quarta-feira, janeiro 25, 2006

Depois da chantagem

Justitita - a XX carta do Tarot

Ao pensar Blackmail a partir do "desequilíbrio", encontrei desequilíbrios nos temas que até aqui me tinham interessado no filme: o fora-de-campo, a relação com outras fitas de Hitchcok, a iconografia, a circulação da culpa, as relações sociais, a Ordem e o Caos, os Amantes...

Fotograma de Blackmail

Primeiro o "desequilíbrio". Na Wikipedia, "Thermodynamic equilibrium [is] the state of a system in which its internal processes cause no net change in its macroscopic properties (such as temperature and pressure)". Ou seja, se o equilíbrio implica a ausência de mudança, o desequilíbrio implica a mudança - o movimento, as transformações, as transferências.

Fotograma de Blackmail

O fora-de-campo implica uma relação de desigualdade entre "pólos": o visto/o não visto, a visão/a audição, saber/não saber, aqui/ali, agora/noutro momento... Um desequilíbrio, no qual, o "pólo" mais "leve" se introduz no mais pesado, transmitindo-lhe significado: tornando significativo o insignificante (o som da violação na imagem do polícia de giro que passeia lá em baixo na rua), alterando ou confirmando significações. Essa relação é, frequentemente, instável, deslocando o "peso" (visual, auditivo, narrativo, significativo…) de um "pólo" para o outro, invertendo posições (tornando visível o, até aí, invisível: jogo complexo entre o que o espectador vê/não vê e o que o pintor-violador vê/não vê na cena da violação, através do biombo, da cortina, do(s) fora-de-campo - de tipologias variadas, desde o que está fora dos limites da imagem até ao que está atrás das cortinas, passando pela assinatura no quadro que estava visível e se torna invisível, atrás da tinta escura que a "apaga"). O fora-de-campo só existe quando o que está invisível se insinua no visível: não é "fora-de campo" tudo aquilo que não está "no campo". É necessária alguma forma de presença, uma relação - em desequilíbrio (como a "expressionista" sombra do chantagista que, após, o assassínio, entra na imagem, tornando relevante e presente uma ausência, agora inquietante - como as sombras inquietantes, presenças-ausência, dos quadros "Metafísicos" de Chirico).

Giorgio de Chirico, Mistério e Melancolia de uma Rua, 1914, óleo sobre tela, 88 x 72 cm, colecção privada

Toda a narrativa de Blackmail é de mudança constante: movimento, deslizes, tranferências, intensidades, tons. Musicalmente: temas que se insinuam, secundários, para passarem a principais, modulações, tons maiores que se tornam menores. Filme policial que se torna melodrama romântico, a azedar com discussões ("esperei meia hora por ti", diz a rapariga ao polícia, quando ele chega depois da prisão de um homem). Na discussão no café insinua-se a infidelidade, depois tema principal na troca do polícia pelo pintor. Ainda durante o tema da infidelidade se insinua o da chantagem. A infidelidade torna-se violação e a violação assassínio, crescendo da chantagem, insinua-se a culpa da rapariga, a infidelidade romântica torna-se infidelidade à Lei (Frank, o polícia, descobre a luva de Alice). Estabelece-se a chantagem do título, tornada tema principal - chantagem que é aceite por Frank, confirmando a aceitação da culpa dela. O chantagista torna-se suspeito de assassínio, o predador é, outra vez, o polícia - e o chantagista a presa: a mesma cena (a mesma melodia), a da sala de refeições da família (White!) de Alice, onde se discutia a chantagem, muda (de tom) para a transferência final da culpa: o chantagista é o putativo assassino necessário a um final feliz - e amargo. Modulação. Transferências. Desequilíbrios: o que estava em cima, passa para baixo.

Roda da Fortuna do Hortus Deliciarum (c. 1176-1196), de Herrad de Hohenbourg, abadessa do convento de Saint-Odile

Como na "Roda da Fortuna / da Sorte" da iconografia medieval. Como no primeiro plano de Blackmail: a roda do carro da Polícia, girando em grande plano. Volta a girar na perseguição final que torna o chantagista em assassino. Como se a Ordem fosse reposta. Mas que Ordem? Em Hitchcok a Ordem não é absoluta, única, imóvel, universal. O Caos é o fluido que habitamos - a Ordem é o espaço privado que construímos para nós, com esforço e em companhia da mulher amada. Aqui é compromisso: um difícil e injusto (do ponto de vista de uma Justiça universal e cega) equilíbrio entre o privado e o público, o indivíduo e o sistema - a traição de Frank reage à traição romântica da namorada, simetricamente, equilibrando o crime dela com outro crime, aceitando a sua culpa e aceitando-a com a sua culpa. Simetria, equilíbrio. Frank aceita a chantagem por ela, transfere a culpa dela para o chantagista e ela, mesmo no final, transferirá a culpa do seu crime (o assassínio) para a inominável (como fora invisível) violação. A rapariga infiel, imoral e assassina e o polícia corrupto e assassino podem viver no seu espaço de ordem - felizes para sempre? A vida depois da morte. O bobo pintado (outro indicador de reviravoltas) e a boneca nua, saem da sala debaixo do braço de um polícia, numa igualdade que não tem em conta o seu desequilíbrio hierárquico (pintura de um pintor / garatuja incompetente) - nivelados e excluídos, como fundo caótico e insignificante do espaço de ordem dos amantes.

Fotograma de Blackmail

A roda em grande plano também é movimento - em vertigem. Vertigo (1958) começa, exactamente, com o vórtice do genérico de Saul Bass. É o filme da vertigem, na filmografia de Hitchcock. Termina com um polícia (James Stewart) pendurado sobre o abismo para onde atirou o corpo que materializara, por duas vezes, a ideia que amou e não conseguiu fazer encarnar. Mas em Vertigo não há final feliz (nem o seu simulacro), nem compromisso, nem Ordem. O fim é esse mesmo: o espectador não partilha, como em Blackmail, o ponto de vista do protagonista: está do outro lado, a ver o seu desespero. Vida depois da morte.

Fotograma da última cena de Vertigo, 1958

O polícia de Vertigo é tão rico que, depois de traumatizado pela vertigem, pode viver dos rendimentos. É o universo social do Hitchcock americano: uniforme, já que, geralmente, protagonistas e inimigos o habitam. Em Blackmail os desequilíbrios sociais são um dos motores do crime: ela aspira à elegância do educado pintor, o chantagista quer charutos corona. Não são desigualdades que geram miséria, mas desejo: nenhum deles é pobre, a rapariga pertence à pequena burguesia comercial urbana onde nasceu Hitchcock. Nenhum deles é, verdadeiramente, das elites sociais: dão-se ares.

Fotograma de Blackmail

A única redenção, património católico, é a do chantagista. Única redenção ontológica e não funcional, pragmática - mas essa redenção é fruto da injustiça e não da Justiça ou da vontade do redimido. Será que Deus escreve direito por linhas tortas? Tracy começa por ser o Mal: uma sombra aterradora. Transforma-se num chantagista sórdido que queremos ver castigado. A suspeita de assassínio lançada pela porteira tira-lhe a arrogância e revela-o como um pobre coitado - de predador a presa. A queda pelo telhado de vidro transforma-o em inocente. Redime-o.

4 comentários:

otipodashistórias disse...

O(s) desequilíbrio(s) sociais a que me refiro dizem respeito a Blackmail e não a Vertigo: neste último, como na generalidade (totalidade?) dos filmes americanos de Hitch, vejo uma uniformidade do meio social dos "bons" e dos "maus" - não são as desigualdades sociais um motor (nem secundário) da acção.
Os desequilíbrios a que te referes parecem-me relevantes e especialmente interessantes as leituras de Midges como masoquista e de Judy como "esquzofrénica" (ou seja, a mulher "real" seria, ela própria, perturbada por uma personalidade múltipla e não somente um dos personagens que criam multiplicidade - não sei se concorde...).

otipodashistórias disse...

Resolveste comentar ao lado dos meus comentários? Os "maus" e os "bons" não estavam em discussão - era uma maneira infantil de explicar uma ideia, cujo centro não era moral mas social (tanto uns como outros são ricos, nas fitas americanas de Hitch).
A moralidade em Hitch é complexa (lembras-te? - "nem pretos nem brancos, há cinzentos por toda a parte"), mas, de há uns anos para cá, devo dizer que acho Hitchcock um moralista, no fundo.
A banalidade: não podia estar mais de acordo - é importantíssima em Hitch (o trivial, o insignificante: que se revelam extraordinários e significativos; o que parece e não é e o que é e não parece e o que parece e é...). Mas não acho que Hitch seja um mestre do banal: porque não é o banal, enquanto banal, que o interessa, mas o que há de extraordinário no banal (como o mais comum dos tipos, que não é espião nem nada, e se vê metido em intrigas internacionais...).
Gosto de te ter por cá. Vai aparecendo e deixa o teu saber e sensibilidade noutros temas também.

(Os teus personagens a olharem a projecção quadrangular de luz branca na parede - do Museu! do Museu das pequenas e grandes coisas - é o quadro de costas das "Meninas", o urinol do Duchamp, o vórtice na banheira do Psycho).

merdinhas disse...

Está bem ...mas pelo menos o da intriga international endossa mesmo o outro personagem.
Esse endossar de personagens também me parece relevante. T. depois de confundido assume de uma maneira ou de outra a identidade do K., não se vê só "metido em intrigas internacionais"...

No blackMail há um desequilibrio dos personagens em si mesmo. Todos resvalam entre um suposto bem ou mal, todos eles fazem qualquer coisa de reprovável. Mas o que os move iliba-os. A todos. Todos vestem peles que aparentemente não eram as suas por um motivo definido e desculpável. Excepção para o violador que foi morto no principio do filme e cataliza os restantes desequilibrios. A morte do chantagista redime-o mas redime também os outros, permite-lhes um reencontro com o que eram antes, apagando o testemunho do crime e funcionando como uma espécie de segunda morte do violador.

Anónimo disse...

Mars 1959: Tout comme "Fenêtre sur cour" et "L'homme qui en savait trop", "Vertigo" est une sorte de parabole de la connaissance. Le détective, fasciné dès le début par le passé (figuré par le portrait de Carlotta Valdès à laquelle la fausse Madeleine prétend s'identifier), sera continuellement renvoyé d'une apparence à une autre apparence : amoureux non d'une femme, mais de l'idée d'une femme (...) Et c'est parce que la forme est pure, belle, rigoureuse et étonnamment riche et libre, qu'on peut dire que les films d'Hitchcock, et "Vertigo" au premier chef, ont pour objet (...) les Idées, au sens, noble, platonicien du terme.