quinta-feira, dezembro 28, 2006

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Feliz Natal! Boas Férias!

Sarah Lucas, Cherubim/Allegory of Love (pormenor), 2006. Photo courtesy Sam Drake © Tate

Muito divertido, também, o calendário adventício da Tate: 23 artistas, representados na colecção do museu, foram convidados a escolher uma obra do museu para figurar no calendário, explicando a sua escolha. É também a Tate que acrescenta um novo "link" à nossa barra vertical à direita: Tate Papers (em "Imprensa").

A gerência do "Arte Moderna" deseja a todos os seus clientes um Feliz Natal.



quarta-feira, dezembro 06, 2006

Novidades

Matej Krén (1958), Book Cell, instalação, 2006 (19 Julho 2006 a 31 Dezembro 2006, CAMJAP, Hall)

A barra lateral de "links" foi aumentada: a maior parte das entradas anteriores foi dividida por temas (para uma escassa minoria que não o foi será preciso continuar a procurar nos arquivos, mês a mês), tornando-as mais facilmente acessíveis. Os temas organizam-se pela ordem em que aparecem no curso e as entradas por ordem cronológica. Algumas entradas ("Barbárie e Civilização", por exemplo), se acedidas através dos "Temas" da barra lateral, poderão apresentar dificuldades de leitura, com caracteres inoportunos: dever-se-á, então, tomar nota do mês e ano em que a entrada foi publicada e acedê-la através dos "Archives".

Matej Krén (1958), Book Cell, instalação, 2006 (19 Julho 2006 a 31 Dezembro 2006, CAMJAP, Hall)

terça-feira, novembro 07, 2006

Site specific

Portal central da fachada ocidental da Catedral de Notre-Dame, século XII, Chartres

A maior parte das obras de pintura e de escultura "medievais", seguramente as maiores e aquelas a que hoje conferimos maior importância, foram obras concebidas para locais específicos, subordinadas (ou, se quiserem tirar a conotação hierárquica, conjugadas com), principalmente, à arquitectura.

Panteão dos Reis de San Isidoro de León, frescos, século XII

O século XII vê as imagens pintadas começarem uma lentíssima separação das estruturas arquitectónicas. Como nos frontais de altar, ainda concebidos para uma função arquitectónica ("decorarem" a parte da frente de um altar), essas imagens são pintadas sobre madeira, tornando-se materialmente independentes dos tectos e paredes. Destacáveis.

Mestre de Seo de Urgell, "Cristo e os Apóstolos", painel de altar, c. 1100, madeira, 103 x 130 cm, Museu Nacional d'Art de Catalunya, Barcelona

As imagens vão começar a viajar. Pequenos objectos transportáveis. Justificadas pelo sagrado e nele vividas, libertam-se, no entanto, de um espaço sagrado "especializado" (os templos) e permitem viver o sagrado em qualquer lugar. Deslocáveis e mais próximas do indivíduo e da intimidade.

Mestre de San Francesco Bardi, "S. Francisco Recebendo os Estigmas", 1240-50, têmpera sobre madeira, 81 x 51 cm, Galleria degli Uffizi, Florença. Parte de um díptico portátil

O "Renascimento" fará triunfar essas imagens isentas de local, nem sequer necessariamente fieis aos limites do seu suporte (o "Barroco" gostará de "enquadramentos" que deixam elementos parcialmente fora da imagem visível), aptas a viajar, leves como o pano das telas, enroláveis, pintadas num óleo que resiste às humidades, adaptadas a qualquer espaço, utilizáveis em qualquer tempo.

Richard Serra, Tilted Arc, 1981, aço, Nova Iorque (destruído). Photo © 1985 David Aschkenas

Em 1981, Richard Serra termina a instalação do seu Tilted Arc na Federal Plaza, em Nova Iorque. A obra é controversa. A entidade encomendadora (a General Services Administration) rapidamente inicia um processo que visa o desmantelamento da obra e a sua colocação noutro local: Serra afirmará que a escultura foi concebida especificamente para o local (é site specific) e que a sua remoção é equivalente a destruí-la. Em 1889, a peça será desmantelada durante a noite e depositada, fragmentada, num ferro-velho.

Christo e Jeanne-Claude, The Pont Neuf Wrapped, Paris 1975-85

Christo actua entre o específico e o não específico do local. Por um lado (específico), a parisiense Pont Neuf é facilmente reconhecível sob o embrulho: mantém uma identidade insubstituível, resistindo à uniformização da embalagem de ecos comerciais. Por outro (não específico), Christo embrulha, e de maneira muito semelhante, qualquer coisa, desde um Volkswagen carocha ao berlinense Reichstag. Independentemente da coisa e do sítio.

Marcel Duchamp (1887-1968), Box in a Valise, 1935-41, MoMA, Nova Iorque © 2006 Artists Rights Society (ARS), New York / ADAGP, Paris / Estate of Marcel Duchamp

Em Duchamp, a "Arte" surge já como uma convenção, uma "etiqueta" atribuída por práticas e instituições de uma sociedade: como o Museu. O seu museu, ao contrário dos outros, é próprio (é seu) e é transportável. Uma das peças transporta, segundo o seu autor, ar de Paris - um local específico.

Hans Namuth (1915-1990), Pollock painting, 1950, fotografia (gelatina e prata), National Portrait Gallery, Smithsonian Institution, Washington, D.C. Publicada na Life, em 1951

A pintura de Pollock, apesar de por ele mesmo colocada num estado intermédio entre o passado do quadro e o futuro do mural, ainda é transportável, apesar das enormes dimensões de algumas obras. Mas é, sobretudo, uma pintura que não tem nenhuma relação pré-concebida com o espaço: não só não é concebida para um local, como é abordada por todos os lados, durante a execução, frequentemente elaborada na horizontalidade do chão, mas para ser pendurada na parede vertical, e, não poucas vezes, cortada e "orientada" apenas após a execução - ou seja, Pollock decide o que fica e o que não fica no quadro e qual será o topo do quadro apenas quando o trabalho de pintura terminou.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Duchamp e o urinol

Alfred Stieglitz (1864-1946), fotografia de Fountain, para o nº 2 da revista The Blind Man, 1917

Este é um "post" recuperado: foi publicado, pela primeira vez, no blog dos Cruzamentos, com o título "No jury, no prizes". Foi de lá cortado para ser colado aqui (com pequeníssimas alterações):

Um Marcel Duchamp a habitar Nova Iorque (a Grande Guerra começara em 1914 e terminaria em 1918), celebrizado pelo "Armory Show" de 1913, foi um dos fundadores da Society of Independent Artists, émulo americano da francesa Societé des Artistes Indépendants (a mesma que levantara obstáculos à exposição do Nu Descendant un Escalier, em Março de 1912), fundada em 1884.

Quando a opinião pública do presente se enerva com a arte contemporânea, considerando arrogante e ditatorial a possibilidade de propor qualquer objecto, imagem ou acção como "Arte", esquece ou ignora que isso acontece pelos motivos contrários aos que geram a irritação: hoje em dia, nenhuma entidade define o que é ou não a tal "Arte". A oitocentista Societé des Artistes surgiu da situação oposta: era a Academia que dizia quem era artista e o que era "Arte", e fazia-o periodicamente, aceitando ou recusando as obras que estariam expostas no anual "Salon". Um júri fazia a escolha. A Societé des Artistes quis furar essa censura prévia: qualquer sócio podia expor (em quantidade limitada, no entanto) aquilo que quisesse. O público decidiria.

A Society americana pretendeu fazer o mesmo: quem quisesse tornar-se sócio pagava 6 dólares e ganhava o direito de expor (com limitação de número) o que quisesse. Daqui, a queixa do Sr. Richard Mutt (ou de alguém tomando a defesa da sua causa), em 1917, na revista The Blind Man: "They say any artist who pays six dollars may exhibit. Mr. Richard Mutt sent in a fountain. Without discussion, this object disappeared and was never exhibited".

O Sr. Richard Mutt tinha adquirido um urinol, provavelmente da empresa J. L. Mott Ironworks, e enviara-o, para exposição, à Society of Independent Artists, de que era sócio. A peça foi excluída por decisão maioritária dos directores da sociedade. Marcel Duchamp demitir-se-ia. Rebentava a polémica.

Mutt e Duchamp parecem ter sido, no entanto, a mesma pessoa. Mas foi Marcel quem escreveu à sua irmã Suzanne: "Uma das minhas amigas, sob um pseudónimo masculino, Richard Mutt, enviou um urinol como escultura". Mesmo a identidade sexual é posta em causa: o senhor ou a senhora Mutt? Em 1920 surgirá Rrose Sèlavy, outro heterónimo de Marcel - uma senhora que o amigo Man Ray fotografará para o rótulo de um frasco de perfume. Arte, escultura, instituições, processos, execução, originalidade, autoria: tudo claramente em questão.

O que sabemos daquela que é, hoje, uma das mais influentes peças da cultura artística do século XX é muito pouco. Sabemos que não é o primeiro "ready-made". A "Roda de Bicicleta" é de 1913. "Ready-made", uma arte "já pronta", um objecto pré-existente a que é alterado o estatuto ao ser proposto como obra de arte. A designação também é um "ready-made": vem da venda de roupa por catálogo, roupa "pronto-a-vestir", como dizemos hoje, por influência francesa ("prêt-à-porter"), oposto da roupa "tailor" ou "custom made", feita, à medida, por um alfaiate. A Fountain desapareceu: dela só restam fotografias - e a mais famosa, a de Alfred Stieglitz, publicada em The Blind Man, consiste numa encenação que não sabemos a quem atribuir. Duchamp, sabemo-lo através de outra fotografia, tinha o urinol pendurado no vão de uma das portas do seu estúdio nova-iorquino da Rua 67. Na Fountain até temos sorte: já a "Roda de Bicicleta" é, sobretudo, conhecida pela fotografia de uma terceira versão de 1951 - as diferenças entre versões da "Roda" são grandes e têm vindo a gerar relevantes discussões.

A história de Fountain é conhecida, sobretudo, devido ao trabalho de investigação histórica de William Camfield, de quem se poderá consultar, na biblioteca ("CD", isto é, "Centro de Documentação") do Ar.Co, "Marcel Duchamp's Fountain: Aesthetic Object, Icon, or Anti-Art?" in Thierry de Duve (org.), The Definitively Unfinished Marcel Duchamp, Cambridge-London, MIT Press, s.d. [1991].

Thierry de Duve faz um bom resumo dessa história em Voici, 100 Ans d'Art Contemporain, Paris, Ludion-Flammarion, s.d., pp. 28-29, obra também existente na biblioteca do Ar.Co.

"Online" existem excelentes recursos:
Especificamente sobre Fountain poder-se-à consultar o artigo respectivo em Unmaking the Museum: Marcel Duchamp's Readymades in Context, de Kristina Seekamp, e, no Art Science Research Laboratory, o muito esclarecedor texto de Michael Betacourt, The Richard Mutt Case: Looking for Marcel Duchamp's Fountain.

De um ponto de vista mais geral, o site Making Sense of Marcel Duchamp é uma viagem divertida e séria pela obra de Marcel Duchamp.
Existe uma Marcel Duchamp World Community, com muita informação e que inclui uma excelente revista cibernética, inteiramente dedicada ao tema, a Tout-Fait.
Principalmente para os francófonos, a z u m b a w e b d e s i g n dedica um site a Marcel Duchamp en Français sur le Web.

A Columbia University (Nova Iorque) disponibiliza alguns excertos de textos e conversas de Duchamp.

Os "links" do texto deste post contêm mais informação: explorem-nos. Na barra de "links" do blog Cruzamentosmais Duchamp.

Brunelleschi e a cúpula

Filippo Brunelleschi (1377-1446), Cúpula de Santa Maria del Fiore (1420-1436)

Textos e imagens, no Istituto e Museo de Storia della Scienza.
Fotografia aérea de Florença no Wikimapia e no Google Earth Explorer.

Anteriores a uma arquitectura resolvida antes da execução, no projecto, estão os desenhos de arquitectura, sem escala, de Villard de Honnecourt (século XIII).

Textos e imagens em AVISTA.
Carl F. Barnes, Jr., The 'Problem' of Villard de Honnecourt.

Villard de Honnecourt, Desenho de cabeceira e estudo de figura, Bib. Nat. ms. fr. 19093, fol. 28

segunda-feira, outubro 16, 2006

Início do ano lectivo de 2006-2007

Joseph Kosuth (1945), One and Three Chairs, 1965
(Uma e Três Cadeiras). Cadeira e 2 fotografias - 200 x 271 x 44 cm
Centre Pompidou
© Adagp, Paris 2005


O curso começa com duas recomendações: a presença em dois ciclos de conferências da Fundação Calouste Gulbenkian. Que Valores para Este Tempo?, que terá a participação, entre outros, de Hubert Damisch e Hans Belting. Visível Invisível - Homenagem a Rembrandt 1606-2006, onde estarão presentes Mario Perniola, Eduardo Batarda e Tzvetan Todorov, numa pluralidade de propostas teóricas relevantes para a matéria abordada em "A Arte Moderna".

A conferência Que Valores para Este Tempo? tem um site, onde poderão ser consultadas quase todas as comunicações.

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Notícias: "Cruzamentos" em correcção

Fotograma do genérico de Saul Bass para North by Northwest / Intriga Internacional (1959), de Alfred Hitchcock

O (apesar de tudo) renovado (?) "site" do Ar.Co continua a insistir nos erros velhos: no que nos diz respeito, vejo-me obrigado a deixar claro que o curso "Cruzamentos" vai funcionar em horário nocturno, entre as 21 e as 23 horas (e não entre as 16 e as 18, como continua a informar o "site"). Funcionará, apenas, em Lisboa, na Rua de Santiago, nº 18.

O curso não é uma repetição da "Arte Moderna" do semestre findo. A manutenção da designação "A Arte Moderna", acrescentada de "II" e de "Cruzamentos" serve a ideia de que os alunos que frequentaram a "Arte Moderna" (I) no primeiro semestre continuarão a encontrar novidades neste curso do segundo semestre. De facto, cronologicamente, o curso iniciar-se-á onde o anterior terminou: nas heranças "pós-impressionistas" sobre as quais construirão os movimentos artísticos do início do século XX, rapidamente conduzindo às "abstracções" com origens nas "famílias" expressionista (Kandinsky), cubista (Delaunay) e futurista (Balla). Metodologicamente as opções são diferentes: ainda mais temático (que "A Arte Moderna" (I)) e "cruzando" artes figurativas com arquitectura, música e cinema - com incursões pela literatura e artes cénicas. Fugindo, sempre, à ilustração dos "movimentos" artísticos que, no século XX, procuraram estender os mesmos princípios por uma pluralidade de áreas consideradas "artísticas". Cruzar-se-á o aparentemente díspar, em busca da cultura de uma época.

O curso terá presença na Internet através de um "blog": http://aartemodernaeantesedepoisdois.blogspot.com/

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Notícias

Paul Cézanne (1839 - 1906), "Grandes Banhistas", 1899-1906, óleo sobre tela, 208 x 249 cm, Philadelphia Museum of Art.

O ano de 2006 é o do centenário da morte de Paul Cézanne - enquanto esperamos pelas celebrações, outras exposições viajam pela obra de artistas que foram convocados para o curso acabadinho de terminar:

Na Tate Britain encontra-se aberta, até 1 de Maio, a exposição Gothic Nightmares (1770-1830) que nos oferece, "online", um dos artigos do catálogo, "Fuseli to Frankenstein: The Visual Arts in the Context of the Gothic", de Martin Myrone, bem como toda uma série de recursos a explorar (biografias, cronologia, imagens em análise, abundante informação sobre cada um dos temas em que se divide a exposição, "links" e sugestões de participação). Do sublime setecentista ao filme de terror.

No Museu Van Gogh o confronto Rembrandt (1606 - 1669) / Michelangelo da Caravaggio (1571 - 1610), exposição em grande destaque, também, no "site" do Rijksmuseum. Abre amanhã, dia 24.

Pablo Picasso, Les Demoiselles d'Avignon, 1907, óleo sobre tela, MoMA., New York.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

O "Impressionismo": ponto de chegada, ponto de partida

Claude Monet (1840-1926), Boulevard des Capucines, Paris, 1873, óleo sobre tela, 61x80 cm., Museu Pushkin, Moscovo.

"Quando saires para pintar tenta esquecer-te dos objectos que tenhas diante dos olhos (...). Pensa simplesmente: aqui está um pequeno quadrado azul, um rectângulo rosa, um raio amarelo e pinta o que vês, a cor e a forma exactas, até que tenhas a sensação de que contemplas pela primeira vez a cena que tens diante de ti", Monet (L. C. Perry, "Reminiscences of Claude Monet from 1889-1909", American Magazine of Art, XVIII, citado por John Gage, Color y Cultura (...), Madrid, Ediciones Siruela, 2ª ed., 1997, p. 209).

"A arte já não é uma sensação puramente visual que registamos (...). Em vez de 'trabalharmos a partir da visão, procuramos o misterioso centro do pensamento', como dizia Gauguin. (...) A arte, mais do que uma cópia, torna-se na transformação subjectiva da natureza. (...) A reconstrução da arte, que Cézanne começou com materiais do Impressionismo, foi continuada por Gauguin (...)", Maurice Denis (1870-1943), 1909 (citado em Charles Harrison, Paul Wood, Art in Theory 1900-1990, Oxford, Blackwell, New Edition, 2003, pp. 48-49).

James McNeill Whistler (1834–1903), Nocturne in Black and Gold: The Falling Rocket, 1875, óleo sobre madeira, 60.3 x 46.6 cm, Detroit Institute of Arts (o quadro esteve na origem de uma famosa polémica que passou pelos tribunais).

Sobre a utilização do legado do "Pós-Impressionismo", das últimas décadas do século XIX, pela arte do início do século XX, legado muito claro nos "fauves" presentemente em exposição no Museu do Chiado (pelo centenário da exposição de 1905), pode consultar-se, "online", o primeiro capítulo de A Critical History of 20th-Century Art, de Donald Kuspit, que está em publicação na alemã Artnet.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

O segundo capítulo da modernidade

O FIM DO "CICLO CLÁSSICO"
c. 1750 - c. 1850

A ARTE E A CIVILIZAÇÃO INDUSTRIAL


Joseph Wright of Derby, Experiência com um Pássaro, 1768, National Gallery, London

O século XVIII acabará por substituir um modelo artístico único (o "Antigo") por uma multiplicidade de modelos de origens diversas. Todos se distinguem do presente (a "Antiguidade" já não é uma ressuscitada "Bela Adormecida", a mesma que os "Bárbaros" tinham morto e enterrado). Cada pólo, "classicista" ou "romântico", se multiplica em variadas opções (neo-palladiano, grego, romano, egípcio / gótico, mourisco, românico, barroquizante): o modelo único não só ganhou companhia como se dividiu internamente, sobretudo a partir da distinção entre cultura romana e cultura grega. As várias opções podem associar-se num mesmo objecto (ecletismo) ou ser usadas em objectos diferentes (o mesmo arquitecto poderá usar o modelo romano para projectar um tribunal e um modelo medieval para projectar uma igreja).

A Ciência (racional, crítica, experimental, matematizada) perfila-se como o único modelo de conhecimento. A máquina irá redefinindo a organização do trabalho e do território e transformará a percepção do mundo. A Lei substitui o Rei. A cultura responderá aceitando ou rejeitando as transformações, profetizando o Progresso ou a Decadência.

Em 1712 Thomas Newcomen patenteia uma máquina a vapor, aperfeiçoada, em 1769, por James Watt. Em 1776 as colónias americanas do Reino Unido tornam-se estados republicanos independentes - e em 1789 a França (adoptando o branco, vermelho e azul da bandeira americana - que as herdara da bandeira britânica) torna-se republicana.

Este segundo capítulo da modernidade finaliza movimentos civilizacionais começados, alguns (como a indústria), no final da "Idade Média" e inicia a destruição da civilização humanista herdada do "Renascimento" - destruição de que a "pós-modernidade" representa a consciência.

A cultura artística oscilará entre, por vezes acumulando-os no mesmo objecto, o "Neo-Classicismo" e o "Romantismo", duas faces da mesma moeda. Clique na imagem para tornar legível o confronto esquemático dos dois pólos:



Novo "link" (em "Imprensa"): Nineteenth-Century Art Worldwide, um excelente periódico sobre a cultura visual oitocentista - vem muito a propósito o artigo dedicado ao pintor Jacques-Louis David (1748-1825).

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

O sublime e o pitoresco

Étienne-Louis Boullée (1728-1799), Cenotáfio [monumento funerário] - corte

"A Critical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful (1757) de Edmund Burke poderá ser considerado como uma súmula das questões que atravessam as obras dos seus antecessores. (...) O motivo que o conduz a tal busca [referência ao "enquiry" do título da obra de Burke] é a confusão entre as noções de Belo e Sublime que impede a acuidade de um entendimento racional conclusivo. (...) A grande diferença entre Belo e Sublime decorrerá da incompatibilidade da sua presença em simultâneo no mesmo objecto, e das sensações que este possa provocar no indivíduo (dor/prazer).
Esquematizando:"Helena Barbas, O Sublime e o Belo - de Longino a Edmund Burke (clique na imagem para tornar o quadro comparativo legível).

"[Em Kant,] o sublime nomeia experiências como tempestades violentas ou edifícios enormes que parecem subjugar-nos (…). Isto pode ser principlamente 'matemático' - se a nossa capacidade para intuir é subjugada pelo tamanho (o edifício enorme) - ou 'dinâmica' - se a nossa capacidade para querer e resistir é subjugada pela força (a tempestade). (…) Kant nota que a experiência da subjugação deveria ser acompanhada pelo sentimento de medo ou, pelo menos, de desconforto. No entanto, o sublime pode ser uma experiência agradável", The Internet Encyclopedia of Philosophy.

Claude Lorrain (1600-1682), "Paisagem com Descanso na Fuga para o Egipto", 1661, óleo sobre tela, 113 x 157cm, Hermitage, St. Petersburg

"O Suplemento de 1801 do Dicionário de Johnson define [o pitoresco] como: 1) o que agrade à vista; 2) o que é assinalável pela sua singularidade e pela capacidade para atingir a imaginação com a força de uma pintura; 3) o que é adequado à pintura paisagística ou à paisagem expressa pela pintura (mas inevitavelmente ligado à pintura)", A Glossary of Aesthetic Terms in Landscape & Literature.

Studley Royal, Yorkshire, década de 1730.

Alguns dos textos fundadores das reflexões sobre o sublime podem ser consultados "on-line":

(Pseudo -) Longinus, On the Sublime, em tradução, para inglês, de W. Rhys Roberts.

Edmund Burke, Philosophical Inquiry into the Origin of Our Ideas of The Sublime and Beautiful, 1757. É parte de The Works of the Right Honourable Edmund Burke, Vol. I., no "Projecto Gutenberg".

Immanuel Kant, The Critique of Judgement, 1790, em tradução de James Creed Meredith.

Uma panorâmica do sublime, desde a Antiguidade, poderá ser encontrada no Literary Link, de Janice E. Patten. Notas com revisitas contemporâneas ao conceito (J.-F. Lyotard), através de citações, em The Shelleys, do Departamento de Inglês da University of Alberta, Ca. O sublime e a Natureza na cultura setecentista britânica, no Dictionary of the History of Ideas, onde o conceito se poderá aprofundar com uma busca da palavra e com a consulta dos artigos referidos em fundo de página ("see also").

O pitoresco e os jardins ingleses, na prática e na teoria, no Gardens Guide.com e Irina's World.com.

Caspar David Friedrich (1774 - 1840), Wanderer Über dem Nebelmeer, 1817, óleo sobre tela, 94,8 x 74,8 cm, Kunsthalle, Hamburg

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Objectos & Mercadorias, S.A.

Maerten Boelema de Stomme, "Natureza Morta", séc. XVII, óleo sobre tela, 73 x 96 cm, Musées Royaux des Beaux-Arts, Brussels.
Os objectos fascinam, conferem estatuto, são perecíveis e temporários - cheios de orgulho, de poder e de melancolia.

Edouard Manet, La Brioche, 1870, óleo sobre tela, The Metropolitan Museum of Art, New York.
Os objectos seduzem: apelam ao observador, para que os use (a faca pede-nos que cortemos o brioche - ou pede o brioche através da faca). E essa sedução é, aqui, feminina, feita de flores e rendas e caixinhas (uma Olímpia sobre o panejamento branco, macia como os pêssegos). Em Manet são, frequentemente, objectos de algum luxo: espargos, ostras - que confirmam um estatuto social, pelo gosto e o custo. O objecto é mercadoria e o consumo insinua-se como valor.

Tom Wesselmann, Bedroom Painting No. 13, 1969, óleo sobre tela, 148 x 163 cm., Staatliche Museen Preussischer Kulturbesitz-Nationalglerie, Berlin.
O consumo triunfou como valor cultural e social. Mesmo o humano é reduzido a mercadoria - contraponto da humanização dos objectos e da "coisificação" das relações e das qualidades abstractas (como em Marx e nos marxistas). Do retrato dos objectos para o corpo (humano) como natureza-morta.

BIBLIOGRAFIA:
Benjamin, W., A Modernidade, Lisboa, Assírio & Alvim, [no prelo].
Bryson, Norman, Looking at the Overlooked: Four Essays on Still Life Painting, Harvard University Press, 1990.
Clark, T. J., The Painting of Modern Life: Paris in the Art of Manet and His Followers, New York, Knopf, 1985.
Schama, Simon, The Embarrassment of Riches: An Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age, New York, Knopf, 1987.

Novos "LINKS": Medieval Wall Painting e Ciudad de la Pintura, ambos em "Imagens". O último inclui obras pictóricas da pré-História à actualidade.
Em "Recursos": World Civilizations, da Washington State University, guia de textos e imagens muito generalista, incluindo civilizações antigas, não-europeias, actividades não artísticas (alguns "links", no entanto, já não funcionam).

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Feliz Aniversário, Wolfgang!

Retrato da família Mozart por Johann Nepomuk della Croce, 1780

"'Não!' gritei. 'Então o Senhor não entende? (...) Eu não quero outra coisa senão expiar, expiar, expiar, enfiar a cabeça debaixo da guilhotina e deixar-me castigar e aniquilar!'
Mozart encarou-me com insuportável ironia.
'Isto é que você é patético, hã! Mas ainda há-de vir a aprender a galhofar, a ter humor. O humor é sempre humor e, se for preciso, há-de aprendê-lo mesmo no cadafalso'.
(...) Subitamente lampejou-me diante dos olhos uma inscrição:

Execução de Harry

e eu baixei a cabeça em sinal de assentimento. (...) O acusador descobriu-se e pigarreou, todos os outros senhores tossicaram também. Depois, pegando num pomposo documento que desdobrou diante dos olhos, passou a ler:
'(...) Pelo que foi dito, se condena Haller à pena de vida eterna e à suspensão por doze horas do direito de admissão no nosso teatro. O réu também não poderá ser dispensado da pena de motejo. Meus senhores, façam favor de me acompanhar: um - dois - três!'
E, aos três, todos os presentes, em irrepreensível entrada, largaram a rir, gargalhada uníssona, riso terrífico do além que um ser humano mal pode suportar.
(...)
Quando voltei a mim, Mozart continuava sentado ao meu lado (...). 'Tem de aprender a ouvir a maldita música radifónica da vida, tem de venerar o espírito subjacente a ela, de levar em zombaria a fantochada que ela tem (...)'.
Baixinho, semi-cerrando os dentes, perguntei: 'E se eu recusar? (...)'
'Nesse caso', respondeu Mozart amenamente, 'propunha-te que fumasses mais um dos meus agradáveis cigarros'" (Hermann Hesse, O Lobo das Estepes, Porto, Edições Afrontamento, 1982).

(Mozart-Archiv der Internationalen Stiftung Mozarteum)

"Milan, Feb. 10, 1770.

SPEAK of the wolf, and you see his ears! I am quite well, and
impatiently expecting an answer from you. I kiss mamma's hand,
and send you a little note and a little kiss; and remain, as
before, your----What? Your aforesaid merry-andrew brother,
Wolfgang in Germany, Amadeo in Italy.

DE MORZANTINI."
Wolfgang Amadeus Mozart, Carta de 10 de Fevereiro de 1770, no Gutenberg Project

Anotações para a Flauta Mágica (1791), no "Diário Musical" de Wolfgang (1784-91).

Mais de 24 horas de Mozart - Sexta e Sábado, 27 e 28, no canal Mezzo. Depois da TV Cabo nos ter literalmente roubado o canal Arte do serviço básico, as comemorações televisivas, sem antena de satélite e sem aceitar o jogo sujo da empresa da PT, têm aí o único bastião.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Nós, os barrocos

Mosteiro de S. Vicente, Lisboa

"(...) Regressando aos azulejos das Mercês* [azulejos (c. 1714) de um "corredor" na Igreja das Mercês, Lisboa, atribuídos a António de Oliveira Bernardes], é a partir do plano do alizar [friso inferior] que o fiel contempla o resto da decoração. O alizar serve assim e ao mesmo tempo de alicerce, de base de observação, e de caixa de ressonância simbólica ao complexo ciclo do tecto. Por outras palavras, tudo parece ter-se organizado para que haja uma espécie de movimento piramidal e ascendente que culmina no quadro central da abóboda. Os doze emblemas, por exemplo, para além de outros paralelismos possíveis no jogo das numerologias exegéticas (as doze tribus [sic] de Israel, os doze apóstolos da Assunção, as doze portas da Nova Jerusalém do Apocalipse, etc, etc), remetem directamente para as doze estrelas à volta da cabeça da Virgem do painel central. Estas estrelas, provenientes da Mulher do Apocalipse, evocam os doze privilégios de Maria, nove coros de anjos e três ordens de santos (virgens, mártires e confessores). Não é muito difícil de imaginar a complexidade das relações que a erudição e a meditação podiam estabelecer entre os diferentes planos do programa de Oliveira Bernardes", Luís de Moura Sobral, "TOTA PULCHRA EST AMICA MEA. Simbolismo e Narração num Programa Imaculista de António de Oliveira Bernardes", Azulejo, nºs. 3/7, 1995-99, pág. 77
*A imagem (em "link") da sala que Moura Sobral propõe como capela da Imaculada Conceição, na Igreja das Mercês, encontra-se "online" num site de fotografia, onde se encontram outras duas imagens do mesmo conjunto de azulejos.

"A mente alegórica selecciona, arbitrariamente, a partir de um vasto e desordenado material que o seu saber tem para oferecer. Tenta combinar um elemento com outro para tentar perceber como podem ser relacionados. Este sentido com aquela imagem, ou aquela imagem com este sentido. O resultado nunca é previsível, já que não há mediação orgânica entre os dois", Walter Benjamin, "Zentralpark", A-Z, Nº 16, Maio 1931, p. 681 (citado em Benjamin H. D. Buchloh, "Allegorical Procedures: Appropriation and Montage in Contemporary Art", Artforum, September 1982, pág. 46)

"À la différence du mythe, l'allégorie aus sens de Benjamin présuppose un principe destructif qui fait éclater la 'belle totalité' en ses ruines et fragments, les fameux Detaillierung [detalhes] baroque. La complexité y est donc puissance de figuration fragmentaire puisque l'image fixée et figée s'y présente sous la loi d'extremum dans une ambiguïté irréductible, oú le sens est en abîme. L'allégorie scelle donc 'la mort de l'intention', qui porte à son acmé la tension propre au baroque entre le monde et la transcendance. Tension temporalisée dans l'écart permanent de l'éternel et de l'instant, propre à un monde sans centre. En ce sens, l'allégorie est un véritable processus d'élargissement des cercles de la signification et de la visualisation de l'objet, qui porte à cette figure baroque par excellence, le concetto comme jeu de mots et de langage. Entre le concept et la figure, la nature et l'histoire, il n'y a aucune opposition dualiste, mais tout un glissement complexe", Christine Buci-Glucksmann, "Baroque et Complexité: une Esthétique du Virtuel" in Walter Moser, Nicolas Goyer (dir.), Réssurgences Baroques, Bruxelles, La Lettre Volée, s.d. [2001], pp.45-46.

"Benjamin suggests that the rigid immanence of the Baroque - its wordly orientation - leads to the loss of an antecipatory, utopian sense of historical time and results in a static almost spatially conceivable experience of time. The desire to act and produce, and the idea of political practice, recede behind a generally dominant attitude of melancholic contemplation. Similar to the general perception of the world's perishable nature during the Baroque, the world of material objects is perceived as being invalid with the transformation of objects into commodities, a transformation wich occured with the general introduction of the capitalist mode of production. The devaluation of objects, their split into use value and exchange value and the fact that they ultimately function exclusively as producers of exchange value, profoundly affects the experience of the individual. (...) 'The devaluation of objects in allegory is surpassed in the world of objects itself by the comodity. The emblems return as commodities' (W. Benjamin, "Zentralpark" in A-Z, Nº 16, Maio 1931). By the time this was written the perception of commodities as emblems had already occurred in Marcel Duchamp's Ready-mades and in the main body of Schwitter's collage work, where language and image, taken into the service of the commodity by advertising, were allegorized by the montage techniques of juxtaposing and fragmenting depleted signifiers", Benjamin H. D. Buchloh, "Allegorical Procedures: Appropriation and Montage in Contemporary Art", Artforum, September 1982, pág. 44.

Tudo o que surge entre parênteses rectos e todos os "bold" foram acrescentados por mim: aqueles explicam vocábulos menos comuns e estes destacam ideias que foram discutidas nas aulas.

BIBLIOGRAFIA
Textos em papel (o asterisco indica que a obra existe no CD do Ar.Co):
Benjamin, Walter, Origem do Drama Trágico Alemão, Lisboa, Assírio&Alvim, 2004*.
Buchloh, Benjamin H. D., "Allegorical Procedures: Appropriation and Montage in Contemporary Art", Artforum, September 1982, pp. 43-56*.
Buci-Glucksmann, Christine, "Baroque et Complexité: une Esthétique du Virtuel" in Walter Moser, Nicolas Goyer (dir.), Réssurgences Baroques, Bruxelles, La Lettre Volée, s.d. [2001], pp.45-53*.
Calabrese, Omar, A Idade Neobarroca, Lisboa, Edições 70, s.d [1ª ed. italiana 1987].
Deleuze, Gilles, Cinéma 1. L'Image-Mouvement, Paris, Les Éditions de Minuit, 1983 - no Ar.Co, existe em francês, português e castelhano*.
Deleuze, Gilles, Le pli. Leibniz et le Baroque, Paris, Les Éditions de Minuit, 1988*.
Gomes, Paulo Varela, "O Anjo e o Robot", Vértice, II Série, Abril de 1988, pp. 19-25.
Owens, Craig, "The Allegorical Impulse: Toward a Theory of Postmodernism" - no Ar.Co, a 1ª parte pode ser consultada em português na Crítica-Revista do Pensamento Contemporâneo, nº 5, Maio, 1989 (cota: P XXVIII 05 (2)), pp. 43-63; a 2ª só existe em inglês, na October, Summer 1980, pp. 58-80 (cota: P XVII 01). O artigo também pode ser consultado em B. Wallis (org.), Art After Modernism: Rethinking Representation, New York, Godine, 1984*.
Schama, Simon, The Embarrassment of Riches: An Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age, Knopf, 1987.

Textos digitais (a ordem é funcional, não alfabética):
Vanessa R. Schwartz, "Walter Benjamin for Historians", The American Historical Review, 106.5 (2001): 50 pars. 27 Jan. 2006.
Vance Bell, "Falling into Time: The Historicity of the Symbol, Other Voices, v.1, n.1 (March 1997).
Gilles Deleuze, "Un Critère pour le Baroque", Chimères, nº 5-6, 1988, pp. 1-6.
Angela Ndalianis, Neo-Baroque Labyrinths and Computer Game Spaces, Special Session 2001 MLA Annual Convention, New Orleans, December 27-30, 2001
Adrian Gargett, "Shopping for Truth", electronic book review, 31-03-2002.
Hélène Frichot, "Constructing a Monstrous Offspring: A Few Steps Toward the Process of Montage", Colloquy, Issue Four, September 2000
Kisho Kurokawa, The Philosophy of Symbiosis

Um guia cibernético (recursos on-line) sobre o Barroco e a Ciência.

Pieter Claesz, " Vanitas ", 1630, óleo sobre tela, 39,5 x 56 cm, Mauritshuis, Den Haag

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Depois da chantagem

Justitita - a XX carta do Tarot

Ao pensar Blackmail a partir do "desequilíbrio", encontrei desequilíbrios nos temas que até aqui me tinham interessado no filme: o fora-de-campo, a relação com outras fitas de Hitchcok, a iconografia, a circulação da culpa, as relações sociais, a Ordem e o Caos, os Amantes...

Fotograma de Blackmail

Primeiro o "desequilíbrio". Na Wikipedia, "Thermodynamic equilibrium [is] the state of a system in which its internal processes cause no net change in its macroscopic properties (such as temperature and pressure)". Ou seja, se o equilíbrio implica a ausência de mudança, o desequilíbrio implica a mudança - o movimento, as transformações, as transferências.

Fotograma de Blackmail

O fora-de-campo implica uma relação de desigualdade entre "pólos": o visto/o não visto, a visão/a audição, saber/não saber, aqui/ali, agora/noutro momento... Um desequilíbrio, no qual, o "pólo" mais "leve" se introduz no mais pesado, transmitindo-lhe significado: tornando significativo o insignificante (o som da violação na imagem do polícia de giro que passeia lá em baixo na rua), alterando ou confirmando significações. Essa relação é, frequentemente, instável, deslocando o "peso" (visual, auditivo, narrativo, significativo…) de um "pólo" para o outro, invertendo posições (tornando visível o, até aí, invisível: jogo complexo entre o que o espectador vê/não vê e o que o pintor-violador vê/não vê na cena da violação, através do biombo, da cortina, do(s) fora-de-campo - de tipologias variadas, desde o que está fora dos limites da imagem até ao que está atrás das cortinas, passando pela assinatura no quadro que estava visível e se torna invisível, atrás da tinta escura que a "apaga"). O fora-de-campo só existe quando o que está invisível se insinua no visível: não é "fora-de campo" tudo aquilo que não está "no campo". É necessária alguma forma de presença, uma relação - em desequilíbrio (como a "expressionista" sombra do chantagista que, após, o assassínio, entra na imagem, tornando relevante e presente uma ausência, agora inquietante - como as sombras inquietantes, presenças-ausência, dos quadros "Metafísicos" de Chirico).

Giorgio de Chirico, Mistério e Melancolia de uma Rua, 1914, óleo sobre tela, 88 x 72 cm, colecção privada

Toda a narrativa de Blackmail é de mudança constante: movimento, deslizes, tranferências, intensidades, tons. Musicalmente: temas que se insinuam, secundários, para passarem a principais, modulações, tons maiores que se tornam menores. Filme policial que se torna melodrama romântico, a azedar com discussões ("esperei meia hora por ti", diz a rapariga ao polícia, quando ele chega depois da prisão de um homem). Na discussão no café insinua-se a infidelidade, depois tema principal na troca do polícia pelo pintor. Ainda durante o tema da infidelidade se insinua o da chantagem. A infidelidade torna-se violação e a violação assassínio, crescendo da chantagem, insinua-se a culpa da rapariga, a infidelidade romântica torna-se infidelidade à Lei (Frank, o polícia, descobre a luva de Alice). Estabelece-se a chantagem do título, tornada tema principal - chantagem que é aceite por Frank, confirmando a aceitação da culpa dela. O chantagista torna-se suspeito de assassínio, o predador é, outra vez, o polícia - e o chantagista a presa: a mesma cena (a mesma melodia), a da sala de refeições da família (White!) de Alice, onde se discutia a chantagem, muda (de tom) para a transferência final da culpa: o chantagista é o putativo assassino necessário a um final feliz - e amargo. Modulação. Transferências. Desequilíbrios: o que estava em cima, passa para baixo.

Roda da Fortuna do Hortus Deliciarum (c. 1176-1196), de Herrad de Hohenbourg, abadessa do convento de Saint-Odile

Como na "Roda da Fortuna / da Sorte" da iconografia medieval. Como no primeiro plano de Blackmail: a roda do carro da Polícia, girando em grande plano. Volta a girar na perseguição final que torna o chantagista em assassino. Como se a Ordem fosse reposta. Mas que Ordem? Em Hitchcok a Ordem não é absoluta, única, imóvel, universal. O Caos é o fluido que habitamos - a Ordem é o espaço privado que construímos para nós, com esforço e em companhia da mulher amada. Aqui é compromisso: um difícil e injusto (do ponto de vista de uma Justiça universal e cega) equilíbrio entre o privado e o público, o indivíduo e o sistema - a traição de Frank reage à traição romântica da namorada, simetricamente, equilibrando o crime dela com outro crime, aceitando a sua culpa e aceitando-a com a sua culpa. Simetria, equilíbrio. Frank aceita a chantagem por ela, transfere a culpa dela para o chantagista e ela, mesmo no final, transferirá a culpa do seu crime (o assassínio) para a inominável (como fora invisível) violação. A rapariga infiel, imoral e assassina e o polícia corrupto e assassino podem viver no seu espaço de ordem - felizes para sempre? A vida depois da morte. O bobo pintado (outro indicador de reviravoltas) e a boneca nua, saem da sala debaixo do braço de um polícia, numa igualdade que não tem em conta o seu desequilíbrio hierárquico (pintura de um pintor / garatuja incompetente) - nivelados e excluídos, como fundo caótico e insignificante do espaço de ordem dos amantes.

Fotograma de Blackmail

A roda em grande plano também é movimento - em vertigem. Vertigo (1958) começa, exactamente, com o vórtice do genérico de Saul Bass. É o filme da vertigem, na filmografia de Hitchcock. Termina com um polícia (James Stewart) pendurado sobre o abismo para onde atirou o corpo que materializara, por duas vezes, a ideia que amou e não conseguiu fazer encarnar. Mas em Vertigo não há final feliz (nem o seu simulacro), nem compromisso, nem Ordem. O fim é esse mesmo: o espectador não partilha, como em Blackmail, o ponto de vista do protagonista: está do outro lado, a ver o seu desespero. Vida depois da morte.

Fotograma da última cena de Vertigo, 1958

O polícia de Vertigo é tão rico que, depois de traumatizado pela vertigem, pode viver dos rendimentos. É o universo social do Hitchcock americano: uniforme, já que, geralmente, protagonistas e inimigos o habitam. Em Blackmail os desequilíbrios sociais são um dos motores do crime: ela aspira à elegância do educado pintor, o chantagista quer charutos corona. Não são desigualdades que geram miséria, mas desejo: nenhum deles é pobre, a rapariga pertence à pequena burguesia comercial urbana onde nasceu Hitchcock. Nenhum deles é, verdadeiramente, das elites sociais: dão-se ares.

Fotograma de Blackmail

A única redenção, património católico, é a do chantagista. Única redenção ontológica e não funcional, pragmática - mas essa redenção é fruto da injustiça e não da Justiça ou da vontade do redimido. Será que Deus escreve direito por linhas tortas? Tracy começa por ser o Mal: uma sombra aterradora. Transforma-se num chantagista sórdido que queremos ver castigado. A suspeita de assassínio lançada pela porteira tira-lhe a arrogância e revela-o como um pobre coitado - de predador a presa. A queda pelo telhado de vidro transforma-o em inocente. Redime-o.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Chantagem?

Antecipando a mostra de video organizada pelo Chapitô, sob o tema Desequilíbrio(s), vou mostrar, no Bartô, a partir das 22 horas do dia 24 de Janeiro, a próxima Terça-Feira, a fita Blackmail/Chantagem (1929), a primeira sonora de Alfred Hitchcock.

É um pioneiro e paradigmático exemplo do "fora-de-campo" (largamente utilizado pela imagem barroca, introduzindo o fragmento e o infinito) em Hitchcock - que terá em Frenzy (1972) exemplo tardio.

Fora/dentro de campo: atrás das cortinas, invisível, mas dentro do enquadramento, até a mão pedir ajuda (Psycho, 1960) e, desesperada, encontrar a faca sobre a mesa (Dial M for Murder / Chamada para a Morte, 1954). É dos poucos exemplos compreensíveis sem narrativa e sem som


A injustiça como desequilíbrio - e queda: "Não é a mim que querem... É ele... Perguntem-lhe a ele..."

Quanto ao desequilíbrio, escrevi, para apresentar a iniciativa:

"Se a Justiça moderna é equidade, a injustiça é desigualdade, expressa, na iconografia da mulher cega com a balança, num desequilíbrio dos pratos. A injustiça, neste primeiro filme sonoro de Hitchcok, é a do castigo daquele cujo o único crime é a chantagem do título, crime menor, comparado com os mais "pesados" assassínio (a rapariga) e a quebra da lei pelo polícia (o namorado da rapariga). No fim, o chantagista cai dos telhados do British Museum, tornando físico e visível o desequilíbrio, segundo a iconografia cristã e hitchcockiana da queda". Os "telhados" são a mamária ou estomacal (à Peter Greenaway) cúpula de vidro do museu londrino. Quem tem telhados de vidro... - "Detectives in glass houses shouldn't wave clues".


O polícia olha o abismo em que caíu aquele que sacrificou pela mulher amada (ou pelas conveniências...) - como outro polícia olhará o abismo em que lançou, pela segunda vez, e terrivelmente última, a mulher amada, em Vertigo/A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958

O fragmento e o infinito

P. P. Rubens, "Rapto das Filhas de Lêucipo", c. 1617, óleo sobre tela, 224 x 211 cm, Alte Pinakothek, Munich

A composição do quadro é dominada pela espiral que nos transporta para fora dos limites da imagem, para o invisível - do pé esquerdo da mulher loira até à cabeça do cavalo cinzento. A asa do pequeno amor à esquerda é cortada: fica fora dos limites da imagem. Escolha livre e fragmento: o visível não é mais do que um pedaço da vastidão infinita do mundo. Ver não é mais do que um pedaço de espaço e de tempo. Só Deus vê tudo e todo o tempo. Quando as imagens se tornam como o espreitar pelo buraco da fechadura, a presença do invisível, do ausente da imagem, obriga-nos a não esquecer tudo o que fica de fora - e a lembrar que o que está dentro da imagem é fragmento. O infinito impõe-se como excesso, como impossibilidade. O que fica de fora está no espaço do observador, não no da imagem - mas só lá está porque não está na imagem: e é a imagem que define o que está e não está nela contido. Virtualidade, participação - jogo com o espectador (como nos espelhos que surgem na pintura).

(Namoro, agora, esta ideia: a grande espiral contínua é feita de duas espirais - a das cores claras (mulheres, cupido, cavalo cinzento) e a dos escuros (homens, panejamento púrpura com que um dos raptores sustém uma das mulheres, cavalo preto). A das mulheres e a dos homens. Ambas são interrompidas, ao serem vistas no plano. A das mulheres é ascensional e conduz para fora do quadro - a dos homens regressa (pela cabeça do cavalo para a cabeça do homem que o monta e pelo seu olhar) ao interior da cena: à mulher raptada. As mulheres buscam uma ajuda que nada lhes oferece: ao contrário da perversa protagonista de Blackmail (Alfred Hitchcock, 1929) ou de Psycho (Alfred Hitchcock, 1960) a mão não se ergue, horizontalmente, para o espectador, mas ascensionalmente para Deus - e as espirais de Hitchcock são as da ausência. A espiral das raptadas e a dos raptores, a da fuga e da esperança (no auxílio divino) e a do desejo).


P. P. Rubens, "Pequeno Julgamento Final", c. 1617-1620, óleo sobre madeira, 183,3 x 119 cm, Alte Pinakothek, Munich

A espiral é ascenção e queda. Movimento - facilmente em vertigem. Rubens ou Bernini não pedem que lhes analisemos os argumentos em primeiro lugar. Entusiasmam-nos, seduzem-nos, sugam-nos numa vertigem física e emocional. Os argumentos vêm depois. Imagens nascidas em combate. Propaganda.


Leonardo da Vinci, "Virgem dos Rochedos", 1483-86, óleo sobre madeira (depois transposto para tela), 199 x 122 cm, Musée du Louvre, Paris

O triângulo ainda se impõe sobre o serpentear da linha que pulsa já (dos pés da criança que abençoa, à direita, pelo rabo vermelho do anjo, para o seu dedo que aponta, para as mãos postas da criança à esquerda, para a mão que o abraça, pelas vestes para a cabeça inclinada para a esquerda...). O triângulo (sobretudo quando equilátero) é imóvel e fechado. A espiral é dinâmica e infinita: é sempre espiral, tenha uma ou mil torções - ou um milhão, ou...

Constantin Brancusi, Coluna Infinita, 1937-38, Târgu-Jiu, Roménia. ©Kael Alford/WMF2001 (fotografia)


Piero della Francesca, "Baptismo de Cristo", 1448-50, têmpera sobre madeira, 167 x 116 cm, National Gallery, London

Os argumentos precisam de tranquilidade: de tempo e de imobilidade. O observador fica no seu lugar. A imagem é potencilamente habitável por ele - mas não o convida a entrar (se bem que... aquele espaço vazio entre nós e o Cristo...). A perspectiva linear do Renascimento fora sempre potencialmente infinita: não delimitando o espaço, não tornando visível o seu fim, fazendo-o continuar, logicamente e à semelhança do que habitamos no quotidiano, para lá das montanhas, das arquitecturas, das neblinas. Mas as imagens propriamente "renascentistas" resumem tudo: o mundo todo. Incluem tudo o que vemos e tudo o que precisamos de ver: nenhuma parte é invisível (sim... talvez uma pequeníssima parcela das asas de um anjo, menos ainda do que parece nesta reprodução - mas, nada é, nunca, totalmente verdadeiro: nem as palavras, nem as imagens, nem as coisas), tudo se vira para o centro, o exterior não impõe a sua presença. O infinito é esquecido. Para lá das montanhas o mundo continua, mas, aqui, o círculo do Céu de Deus encontra a Terra dos Homens - no ponto exacto onde paira o Espírito Santo. E o corpo de Cristo é tão cilíndrico como o tronco da árvore que o ladeia.

Seguir-se-à bibliografia para ligar o Barroco, como alegoria e fragmento, ao presente da fotografia, do cinema, do hipertexto e da assemblage: Walter Benjamin, Gilles Delleuze, Benjamin Buchloh, Craig Owens, Omar Calabrese, Christine Buci-Glucksmann. Um programa iconográfico da azulejaria portuguesa. Textos "on-line". Recursos sobre o Barroco como cultura. Num próximo momento.