Robert Gober, Drain, 1989
"Todos os começos se erguem do olho de um vórtice. Este ponto zero é quase imóvel. 'Quase' é o que o torna uma excepção entre todos os pontos zero. O centro silencioso de um vórtice é um intermediário dinâmico, um intervalo de incerteza, um limiar: é um acontecimento. A exclusividade do seu silêncio alberga a liberdade absoluta. Sem espaço, constitui um exílio; sem tempo, é composto por múltiplos presentes, por uma série de começos. Este ponto zero tem uma única qualidade: é um hiato. Porém, o silêncio do vórtice nutre o impulso para uma mudança de direcção e uma mudança no pensamento.
O ponto de partida do meu livro é este instante de absoluto silêncio. Porque a quase intangível experiência do encontro, frente-a-frente, com a obra de arte parece-me definível apenas como o momento de choque induzido por tal hiato do ponto zero".
Doris von Drahten, Vortex of Silence, Milano, Edizioni Charta, 2004, pág. 6.
Alfred Hitchcock/Saul Bass, genérico inicial de Vertigo (fotograma), 1958
"Mas talvez seja tempo de nomear essa imagem que aparece no fundo do espelho [das "Meninas", de Velázquez] e que o pintor vê em frente do quadro. Talvez seja melhor determinar, de uma vez para sempre, a identidade das personagens presentes ou indicadas (…). Estes nomes próprios seriam referências úteis, evitariam designações ambíguas; dir-nos-iam, em todo caso, o que o pintor vê e o que contemplam quase todas as personagens do quadro. Mas a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita, nem que, em face do visível, ela acuse um deficit que se esforçaria em vão por superar. Trata-se de duas coisas irredutíveis uma à outra: por mais que se tente dizer o que se vê, o que se vê jamais reside no que se diz; por mais que se tente fazer ver por imagens, por metáforas, comparações, o que se diz, o lugar em que estas resplandecem não é aquele que os olhos projectam, mas sim aquele que as sequências sintácticas definem. (…) Se quisermos manter aberta a relação da linguagem e do visível, se quisermos falar não contra mas a partir de tal incompatibilidade, de tal modo que fiquemos o mais perto possível de uma e do outro, então é necessário pôr de parte os nomes próprios e permanecer no infinito da tarefa".
Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, Lisboa, Edições 70, s.d., pp. 64-65
Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Entre a aparência e o conhecimento que, mal ou bem, considero verdadeiro há uma diferença fundamental, a mesma que podemos encontrar entre o diletantismo e a erudição.
Como sou diletante por excelência resta-me agradecer-lhe o vórtice e o vértice.
O olho morto e o terrível ralo - seu contraponto, seu contracampo: ponto de fuga que não conduz ao infinito. Que não conduz. Se os óculos espelhados do polícia, poucas sequências antes, devolviam ao observador a sua própria observação, o ralo arrasta o olhar para lá do olhar, para onde é impossível ver. Buraco negro que tudo suga. Ponto de fuga sem transcendência...
Psycho é o território hitchcockiano que materializa todas as ausências: a de Rebecca (Rebecca, 1940), de Madeleine (Vertigo), do Senhor/Senhora Kaplan (North by Northwest), da força instigadora dos pássaros, em The Birds, de 1963, (que é como quem diz: o Deus Ausente e Insondável?) - todos se encontram no corpo empalhado da mãe. A casa da Mãe de Norman é o castelo de Elsinore, do confuso e edipiano Hamlet, e a mansão de Rebecca: o corpo ausente da Mãe, marcado na cama onde dormia com o amante, é a Rebecca que já não veste a legião de vestidos preservados, como relíquias, pela governanta fetichista. Os pássaros, esses, estão empalhados...
Norman espreita por um buraco o objecto do seu desejo impossível, bloqueado pela figura da Mãe que vive nele, e, travestido como Mãe, irá conduzir esse objecto a um outro buraco, negro, terrível, sem regresso, sem diálogo, o buraco que escorre o sangue na água do banho. Vórtice/vertigem, como o que habita o olhar da mulher do genérico inicial de A Mulher que Viveu Duas Vezes/Vertigo, dois anos anterior. Na Intriga Internacional/North by Northwest (1959), a mulher (Eva-Marie Saint) está no centro da vertigem da perspectiva acelerada pelo estreito corredor da carruagem de combóio - fálico combóio, finalmente entrado no escuro túnel, no "happy end".
Norman espreita por um buraco o objecto do seu desejo, depois de retirar o quadro que o escondia, uma reprodução de uma qualquer "Susana e os Velhos". Susana e os seus próprios velhos, "ses vieux, même", como diria o Duchamp do "Grande Vidro" (La Mariée Mise à Nu Par Ses Célibataires, Même, 1915-23, Philadelphia Museum of Art), em versão psicopata, de mistério policial enamorado pelos primórdios do cinema, no peepshow oferecido por Étant Donnés - em ambiente que me lembra, sempre, o Frenzy, de Hitchcock.
O espelho das "Meninas" de Velasquez é, em Foucault, um lugar complexo, onde se encontra o que é impossível localizar num lugar único e contemporâneo: o pintor que representou, a figura representada e o observador. Timidamente, fantasmagoricamente, revela os reis de Espanha: não nos devolve, a nós, que olhamos, nem ao Velasquez que olhou para pintar. A grande tela de costas é como que o verso da grande tela, as "Meninas", que Velasquez nos mostra no momento (agora ficcionado, encenado, alegórico) em que o pintou: quadro invisível, superfície bidimensional a ser violada, mas do lado invisível, pela perspectiva. Nada mostra. Nada diz. Aí podemos colar todas as imagens e todas as palavras - e mostrar os conceitos e falar das imagens, não contra, mas a partir da sua incompatibilidade.
A Fountain, o urinol de Duchamp, é uma obra de arte? Se dissermos "sim" ele fará perceber aquilo em que o não é - se dissermos "não" ele fará perceber aquilo em que o é. Permanente crítica muda, é motor que conduz a "Arte" ao que, sobretudo, é hoje: um espaço raro de absoluta liberdade, crítico e crente.
Enviar um comentário