segunda-feira, janeiro 30, 2006

Objectos & Mercadorias, S.A.

Maerten Boelema de Stomme, "Natureza Morta", séc. XVII, óleo sobre tela, 73 x 96 cm, Musées Royaux des Beaux-Arts, Brussels.
Os objectos fascinam, conferem estatuto, são perecíveis e temporários - cheios de orgulho, de poder e de melancolia.

Edouard Manet, La Brioche, 1870, óleo sobre tela, The Metropolitan Museum of Art, New York.
Os objectos seduzem: apelam ao observador, para que os use (a faca pede-nos que cortemos o brioche - ou pede o brioche através da faca). E essa sedução é, aqui, feminina, feita de flores e rendas e caixinhas (uma Olímpia sobre o panejamento branco, macia como os pêssegos). Em Manet são, frequentemente, objectos de algum luxo: espargos, ostras - que confirmam um estatuto social, pelo gosto e o custo. O objecto é mercadoria e o consumo insinua-se como valor.

Tom Wesselmann, Bedroom Painting No. 13, 1969, óleo sobre tela, 148 x 163 cm., Staatliche Museen Preussischer Kulturbesitz-Nationalglerie, Berlin.
O consumo triunfou como valor cultural e social. Mesmo o humano é reduzido a mercadoria - contraponto da humanização dos objectos e da "coisificação" das relações e das qualidades abstractas (como em Marx e nos marxistas). Do retrato dos objectos para o corpo (humano) como natureza-morta.

BIBLIOGRAFIA:
Benjamin, W., A Modernidade, Lisboa, Assírio & Alvim, [no prelo].
Bryson, Norman, Looking at the Overlooked: Four Essays on Still Life Painting, Harvard University Press, 1990.
Clark, T. J., The Painting of Modern Life: Paris in the Art of Manet and His Followers, New York, Knopf, 1985.
Schama, Simon, The Embarrassment of Riches: An Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age, New York, Knopf, 1987.

Novos "LINKS": Medieval Wall Painting e Ciudad de la Pintura, ambos em "Imagens". O último inclui obras pictóricas da pré-História à actualidade.
Em "Recursos": World Civilizations, da Washington State University, guia de textos e imagens muito generalista, incluindo civilizações antigas, não-europeias, actividades não artísticas (alguns "links", no entanto, já não funcionam).

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Feliz Aniversário, Wolfgang!

Retrato da família Mozart por Johann Nepomuk della Croce, 1780

"'Não!' gritei. 'Então o Senhor não entende? (...) Eu não quero outra coisa senão expiar, expiar, expiar, enfiar a cabeça debaixo da guilhotina e deixar-me castigar e aniquilar!'
Mozart encarou-me com insuportável ironia.
'Isto é que você é patético, hã! Mas ainda há-de vir a aprender a galhofar, a ter humor. O humor é sempre humor e, se for preciso, há-de aprendê-lo mesmo no cadafalso'.
(...) Subitamente lampejou-me diante dos olhos uma inscrição:

Execução de Harry

e eu baixei a cabeça em sinal de assentimento. (...) O acusador descobriu-se e pigarreou, todos os outros senhores tossicaram também. Depois, pegando num pomposo documento que desdobrou diante dos olhos, passou a ler:
'(...) Pelo que foi dito, se condena Haller à pena de vida eterna e à suspensão por doze horas do direito de admissão no nosso teatro. O réu também não poderá ser dispensado da pena de motejo. Meus senhores, façam favor de me acompanhar: um - dois - três!'
E, aos três, todos os presentes, em irrepreensível entrada, largaram a rir, gargalhada uníssona, riso terrífico do além que um ser humano mal pode suportar.
(...)
Quando voltei a mim, Mozart continuava sentado ao meu lado (...). 'Tem de aprender a ouvir a maldita música radifónica da vida, tem de venerar o espírito subjacente a ela, de levar em zombaria a fantochada que ela tem (...)'.
Baixinho, semi-cerrando os dentes, perguntei: 'E se eu recusar? (...)'
'Nesse caso', respondeu Mozart amenamente, 'propunha-te que fumasses mais um dos meus agradáveis cigarros'" (Hermann Hesse, O Lobo das Estepes, Porto, Edições Afrontamento, 1982).

(Mozart-Archiv der Internationalen Stiftung Mozarteum)

"Milan, Feb. 10, 1770.

SPEAK of the wolf, and you see his ears! I am quite well, and
impatiently expecting an answer from you. I kiss mamma's hand,
and send you a little note and a little kiss; and remain, as
before, your----What? Your aforesaid merry-andrew brother,
Wolfgang in Germany, Amadeo in Italy.

DE MORZANTINI."
Wolfgang Amadeus Mozart, Carta de 10 de Fevereiro de 1770, no Gutenberg Project

Anotações para a Flauta Mágica (1791), no "Diário Musical" de Wolfgang (1784-91).

Mais de 24 horas de Mozart - Sexta e Sábado, 27 e 28, no canal Mezzo. Depois da TV Cabo nos ter literalmente roubado o canal Arte do serviço básico, as comemorações televisivas, sem antena de satélite e sem aceitar o jogo sujo da empresa da PT, têm aí o único bastião.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Nós, os barrocos

Mosteiro de S. Vicente, Lisboa

"(...) Regressando aos azulejos das Mercês* [azulejos (c. 1714) de um "corredor" na Igreja das Mercês, Lisboa, atribuídos a António de Oliveira Bernardes], é a partir do plano do alizar [friso inferior] que o fiel contempla o resto da decoração. O alizar serve assim e ao mesmo tempo de alicerce, de base de observação, e de caixa de ressonância simbólica ao complexo ciclo do tecto. Por outras palavras, tudo parece ter-se organizado para que haja uma espécie de movimento piramidal e ascendente que culmina no quadro central da abóboda. Os doze emblemas, por exemplo, para além de outros paralelismos possíveis no jogo das numerologias exegéticas (as doze tribus [sic] de Israel, os doze apóstolos da Assunção, as doze portas da Nova Jerusalém do Apocalipse, etc, etc), remetem directamente para as doze estrelas à volta da cabeça da Virgem do painel central. Estas estrelas, provenientes da Mulher do Apocalipse, evocam os doze privilégios de Maria, nove coros de anjos e três ordens de santos (virgens, mártires e confessores). Não é muito difícil de imaginar a complexidade das relações que a erudição e a meditação podiam estabelecer entre os diferentes planos do programa de Oliveira Bernardes", Luís de Moura Sobral, "TOTA PULCHRA EST AMICA MEA. Simbolismo e Narração num Programa Imaculista de António de Oliveira Bernardes", Azulejo, nºs. 3/7, 1995-99, pág. 77
*A imagem (em "link") da sala que Moura Sobral propõe como capela da Imaculada Conceição, na Igreja das Mercês, encontra-se "online" num site de fotografia, onde se encontram outras duas imagens do mesmo conjunto de azulejos.

"A mente alegórica selecciona, arbitrariamente, a partir de um vasto e desordenado material que o seu saber tem para oferecer. Tenta combinar um elemento com outro para tentar perceber como podem ser relacionados. Este sentido com aquela imagem, ou aquela imagem com este sentido. O resultado nunca é previsível, já que não há mediação orgânica entre os dois", Walter Benjamin, "Zentralpark", A-Z, Nº 16, Maio 1931, p. 681 (citado em Benjamin H. D. Buchloh, "Allegorical Procedures: Appropriation and Montage in Contemporary Art", Artforum, September 1982, pág. 46)

"À la différence du mythe, l'allégorie aus sens de Benjamin présuppose un principe destructif qui fait éclater la 'belle totalité' en ses ruines et fragments, les fameux Detaillierung [detalhes] baroque. La complexité y est donc puissance de figuration fragmentaire puisque l'image fixée et figée s'y présente sous la loi d'extremum dans une ambiguïté irréductible, oú le sens est en abîme. L'allégorie scelle donc 'la mort de l'intention', qui porte à son acmé la tension propre au baroque entre le monde et la transcendance. Tension temporalisée dans l'écart permanent de l'éternel et de l'instant, propre à un monde sans centre. En ce sens, l'allégorie est un véritable processus d'élargissement des cercles de la signification et de la visualisation de l'objet, qui porte à cette figure baroque par excellence, le concetto comme jeu de mots et de langage. Entre le concept et la figure, la nature et l'histoire, il n'y a aucune opposition dualiste, mais tout un glissement complexe", Christine Buci-Glucksmann, "Baroque et Complexité: une Esthétique du Virtuel" in Walter Moser, Nicolas Goyer (dir.), Réssurgences Baroques, Bruxelles, La Lettre Volée, s.d. [2001], pp.45-46.

"Benjamin suggests that the rigid immanence of the Baroque - its wordly orientation - leads to the loss of an antecipatory, utopian sense of historical time and results in a static almost spatially conceivable experience of time. The desire to act and produce, and the idea of political practice, recede behind a generally dominant attitude of melancholic contemplation. Similar to the general perception of the world's perishable nature during the Baroque, the world of material objects is perceived as being invalid with the transformation of objects into commodities, a transformation wich occured with the general introduction of the capitalist mode of production. The devaluation of objects, their split into use value and exchange value and the fact that they ultimately function exclusively as producers of exchange value, profoundly affects the experience of the individual. (...) 'The devaluation of objects in allegory is surpassed in the world of objects itself by the comodity. The emblems return as commodities' (W. Benjamin, "Zentralpark" in A-Z, Nº 16, Maio 1931). By the time this was written the perception of commodities as emblems had already occurred in Marcel Duchamp's Ready-mades and in the main body of Schwitter's collage work, where language and image, taken into the service of the commodity by advertising, were allegorized by the montage techniques of juxtaposing and fragmenting depleted signifiers", Benjamin H. D. Buchloh, "Allegorical Procedures: Appropriation and Montage in Contemporary Art", Artforum, September 1982, pág. 44.

Tudo o que surge entre parênteses rectos e todos os "bold" foram acrescentados por mim: aqueles explicam vocábulos menos comuns e estes destacam ideias que foram discutidas nas aulas.

BIBLIOGRAFIA
Textos em papel (o asterisco indica que a obra existe no CD do Ar.Co):
Benjamin, Walter, Origem do Drama Trágico Alemão, Lisboa, Assírio&Alvim, 2004*.
Buchloh, Benjamin H. D., "Allegorical Procedures: Appropriation and Montage in Contemporary Art", Artforum, September 1982, pp. 43-56*.
Buci-Glucksmann, Christine, "Baroque et Complexité: une Esthétique du Virtuel" in Walter Moser, Nicolas Goyer (dir.), Réssurgences Baroques, Bruxelles, La Lettre Volée, s.d. [2001], pp.45-53*.
Calabrese, Omar, A Idade Neobarroca, Lisboa, Edições 70, s.d [1ª ed. italiana 1987].
Deleuze, Gilles, Cinéma 1. L'Image-Mouvement, Paris, Les Éditions de Minuit, 1983 - no Ar.Co, existe em francês, português e castelhano*.
Deleuze, Gilles, Le pli. Leibniz et le Baroque, Paris, Les Éditions de Minuit, 1988*.
Gomes, Paulo Varela, "O Anjo e o Robot", Vértice, II Série, Abril de 1988, pp. 19-25.
Owens, Craig, "The Allegorical Impulse: Toward a Theory of Postmodernism" - no Ar.Co, a 1ª parte pode ser consultada em português na Crítica-Revista do Pensamento Contemporâneo, nº 5, Maio, 1989 (cota: P XXVIII 05 (2)), pp. 43-63; a 2ª só existe em inglês, na October, Summer 1980, pp. 58-80 (cota: P XVII 01). O artigo também pode ser consultado em B. Wallis (org.), Art After Modernism: Rethinking Representation, New York, Godine, 1984*.
Schama, Simon, The Embarrassment of Riches: An Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age, Knopf, 1987.

Textos digitais (a ordem é funcional, não alfabética):
Vanessa R. Schwartz, "Walter Benjamin for Historians", The American Historical Review, 106.5 (2001): 50 pars. 27 Jan. 2006.
Vance Bell, "Falling into Time: The Historicity of the Symbol, Other Voices, v.1, n.1 (March 1997).
Gilles Deleuze, "Un Critère pour le Baroque", Chimères, nº 5-6, 1988, pp. 1-6.
Angela Ndalianis, Neo-Baroque Labyrinths and Computer Game Spaces, Special Session 2001 MLA Annual Convention, New Orleans, December 27-30, 2001
Adrian Gargett, "Shopping for Truth", electronic book review, 31-03-2002.
Hélène Frichot, "Constructing a Monstrous Offspring: A Few Steps Toward the Process of Montage", Colloquy, Issue Four, September 2000
Kisho Kurokawa, The Philosophy of Symbiosis

Um guia cibernético (recursos on-line) sobre o Barroco e a Ciência.

Pieter Claesz, " Vanitas ", 1630, óleo sobre tela, 39,5 x 56 cm, Mauritshuis, Den Haag

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Depois da chantagem

Justitita - a XX carta do Tarot

Ao pensar Blackmail a partir do "desequilíbrio", encontrei desequilíbrios nos temas que até aqui me tinham interessado no filme: o fora-de-campo, a relação com outras fitas de Hitchcok, a iconografia, a circulação da culpa, as relações sociais, a Ordem e o Caos, os Amantes...

Fotograma de Blackmail

Primeiro o "desequilíbrio". Na Wikipedia, "Thermodynamic equilibrium [is] the state of a system in which its internal processes cause no net change in its macroscopic properties (such as temperature and pressure)". Ou seja, se o equilíbrio implica a ausência de mudança, o desequilíbrio implica a mudança - o movimento, as transformações, as transferências.

Fotograma de Blackmail

O fora-de-campo implica uma relação de desigualdade entre "pólos": o visto/o não visto, a visão/a audição, saber/não saber, aqui/ali, agora/noutro momento... Um desequilíbrio, no qual, o "pólo" mais "leve" se introduz no mais pesado, transmitindo-lhe significado: tornando significativo o insignificante (o som da violação na imagem do polícia de giro que passeia lá em baixo na rua), alterando ou confirmando significações. Essa relação é, frequentemente, instável, deslocando o "peso" (visual, auditivo, narrativo, significativo…) de um "pólo" para o outro, invertendo posições (tornando visível o, até aí, invisível: jogo complexo entre o que o espectador vê/não vê e o que o pintor-violador vê/não vê na cena da violação, através do biombo, da cortina, do(s) fora-de-campo - de tipologias variadas, desde o que está fora dos limites da imagem até ao que está atrás das cortinas, passando pela assinatura no quadro que estava visível e se torna invisível, atrás da tinta escura que a "apaga"). O fora-de-campo só existe quando o que está invisível se insinua no visível: não é "fora-de campo" tudo aquilo que não está "no campo". É necessária alguma forma de presença, uma relação - em desequilíbrio (como a "expressionista" sombra do chantagista que, após, o assassínio, entra na imagem, tornando relevante e presente uma ausência, agora inquietante - como as sombras inquietantes, presenças-ausência, dos quadros "Metafísicos" de Chirico).

Giorgio de Chirico, Mistério e Melancolia de uma Rua, 1914, óleo sobre tela, 88 x 72 cm, colecção privada

Toda a narrativa de Blackmail é de mudança constante: movimento, deslizes, tranferências, intensidades, tons. Musicalmente: temas que se insinuam, secundários, para passarem a principais, modulações, tons maiores que se tornam menores. Filme policial que se torna melodrama romântico, a azedar com discussões ("esperei meia hora por ti", diz a rapariga ao polícia, quando ele chega depois da prisão de um homem). Na discussão no café insinua-se a infidelidade, depois tema principal na troca do polícia pelo pintor. Ainda durante o tema da infidelidade se insinua o da chantagem. A infidelidade torna-se violação e a violação assassínio, crescendo da chantagem, insinua-se a culpa da rapariga, a infidelidade romântica torna-se infidelidade à Lei (Frank, o polícia, descobre a luva de Alice). Estabelece-se a chantagem do título, tornada tema principal - chantagem que é aceite por Frank, confirmando a aceitação da culpa dela. O chantagista torna-se suspeito de assassínio, o predador é, outra vez, o polícia - e o chantagista a presa: a mesma cena (a mesma melodia), a da sala de refeições da família (White!) de Alice, onde se discutia a chantagem, muda (de tom) para a transferência final da culpa: o chantagista é o putativo assassino necessário a um final feliz - e amargo. Modulação. Transferências. Desequilíbrios: o que estava em cima, passa para baixo.

Roda da Fortuna do Hortus Deliciarum (c. 1176-1196), de Herrad de Hohenbourg, abadessa do convento de Saint-Odile

Como na "Roda da Fortuna / da Sorte" da iconografia medieval. Como no primeiro plano de Blackmail: a roda do carro da Polícia, girando em grande plano. Volta a girar na perseguição final que torna o chantagista em assassino. Como se a Ordem fosse reposta. Mas que Ordem? Em Hitchcok a Ordem não é absoluta, única, imóvel, universal. O Caos é o fluido que habitamos - a Ordem é o espaço privado que construímos para nós, com esforço e em companhia da mulher amada. Aqui é compromisso: um difícil e injusto (do ponto de vista de uma Justiça universal e cega) equilíbrio entre o privado e o público, o indivíduo e o sistema - a traição de Frank reage à traição romântica da namorada, simetricamente, equilibrando o crime dela com outro crime, aceitando a sua culpa e aceitando-a com a sua culpa. Simetria, equilíbrio. Frank aceita a chantagem por ela, transfere a culpa dela para o chantagista e ela, mesmo no final, transferirá a culpa do seu crime (o assassínio) para a inominável (como fora invisível) violação. A rapariga infiel, imoral e assassina e o polícia corrupto e assassino podem viver no seu espaço de ordem - felizes para sempre? A vida depois da morte. O bobo pintado (outro indicador de reviravoltas) e a boneca nua, saem da sala debaixo do braço de um polícia, numa igualdade que não tem em conta o seu desequilíbrio hierárquico (pintura de um pintor / garatuja incompetente) - nivelados e excluídos, como fundo caótico e insignificante do espaço de ordem dos amantes.

Fotograma de Blackmail

A roda em grande plano também é movimento - em vertigem. Vertigo (1958) começa, exactamente, com o vórtice do genérico de Saul Bass. É o filme da vertigem, na filmografia de Hitchcock. Termina com um polícia (James Stewart) pendurado sobre o abismo para onde atirou o corpo que materializara, por duas vezes, a ideia que amou e não conseguiu fazer encarnar. Mas em Vertigo não há final feliz (nem o seu simulacro), nem compromisso, nem Ordem. O fim é esse mesmo: o espectador não partilha, como em Blackmail, o ponto de vista do protagonista: está do outro lado, a ver o seu desespero. Vida depois da morte.

Fotograma da última cena de Vertigo, 1958

O polícia de Vertigo é tão rico que, depois de traumatizado pela vertigem, pode viver dos rendimentos. É o universo social do Hitchcock americano: uniforme, já que, geralmente, protagonistas e inimigos o habitam. Em Blackmail os desequilíbrios sociais são um dos motores do crime: ela aspira à elegância do educado pintor, o chantagista quer charutos corona. Não são desigualdades que geram miséria, mas desejo: nenhum deles é pobre, a rapariga pertence à pequena burguesia comercial urbana onde nasceu Hitchcock. Nenhum deles é, verdadeiramente, das elites sociais: dão-se ares.

Fotograma de Blackmail

A única redenção, património católico, é a do chantagista. Única redenção ontológica e não funcional, pragmática - mas essa redenção é fruto da injustiça e não da Justiça ou da vontade do redimido. Será que Deus escreve direito por linhas tortas? Tracy começa por ser o Mal: uma sombra aterradora. Transforma-se num chantagista sórdido que queremos ver castigado. A suspeita de assassínio lançada pela porteira tira-lhe a arrogância e revela-o como um pobre coitado - de predador a presa. A queda pelo telhado de vidro transforma-o em inocente. Redime-o.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Chantagem?

Antecipando a mostra de video organizada pelo Chapitô, sob o tema Desequilíbrio(s), vou mostrar, no Bartô, a partir das 22 horas do dia 24 de Janeiro, a próxima Terça-Feira, a fita Blackmail/Chantagem (1929), a primeira sonora de Alfred Hitchcock.

É um pioneiro e paradigmático exemplo do "fora-de-campo" (largamente utilizado pela imagem barroca, introduzindo o fragmento e o infinito) em Hitchcock - que terá em Frenzy (1972) exemplo tardio.

Fora/dentro de campo: atrás das cortinas, invisível, mas dentro do enquadramento, até a mão pedir ajuda (Psycho, 1960) e, desesperada, encontrar a faca sobre a mesa (Dial M for Murder / Chamada para a Morte, 1954). É dos poucos exemplos compreensíveis sem narrativa e sem som


A injustiça como desequilíbrio - e queda: "Não é a mim que querem... É ele... Perguntem-lhe a ele..."

Quanto ao desequilíbrio, escrevi, para apresentar a iniciativa:

"Se a Justiça moderna é equidade, a injustiça é desigualdade, expressa, na iconografia da mulher cega com a balança, num desequilíbrio dos pratos. A injustiça, neste primeiro filme sonoro de Hitchcok, é a do castigo daquele cujo o único crime é a chantagem do título, crime menor, comparado com os mais "pesados" assassínio (a rapariga) e a quebra da lei pelo polícia (o namorado da rapariga). No fim, o chantagista cai dos telhados do British Museum, tornando físico e visível o desequilíbrio, segundo a iconografia cristã e hitchcockiana da queda". Os "telhados" são a mamária ou estomacal (à Peter Greenaway) cúpula de vidro do museu londrino. Quem tem telhados de vidro... - "Detectives in glass houses shouldn't wave clues".


O polícia olha o abismo em que caíu aquele que sacrificou pela mulher amada (ou pelas conveniências...) - como outro polícia olhará o abismo em que lançou, pela segunda vez, e terrivelmente última, a mulher amada, em Vertigo/A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958

O fragmento e o infinito

P. P. Rubens, "Rapto das Filhas de Lêucipo", c. 1617, óleo sobre tela, 224 x 211 cm, Alte Pinakothek, Munich

A composição do quadro é dominada pela espiral que nos transporta para fora dos limites da imagem, para o invisível - do pé esquerdo da mulher loira até à cabeça do cavalo cinzento. A asa do pequeno amor à esquerda é cortada: fica fora dos limites da imagem. Escolha livre e fragmento: o visível não é mais do que um pedaço da vastidão infinita do mundo. Ver não é mais do que um pedaço de espaço e de tempo. Só Deus vê tudo e todo o tempo. Quando as imagens se tornam como o espreitar pelo buraco da fechadura, a presença do invisível, do ausente da imagem, obriga-nos a não esquecer tudo o que fica de fora - e a lembrar que o que está dentro da imagem é fragmento. O infinito impõe-se como excesso, como impossibilidade. O que fica de fora está no espaço do observador, não no da imagem - mas só lá está porque não está na imagem: e é a imagem que define o que está e não está nela contido. Virtualidade, participação - jogo com o espectador (como nos espelhos que surgem na pintura).

(Namoro, agora, esta ideia: a grande espiral contínua é feita de duas espirais - a das cores claras (mulheres, cupido, cavalo cinzento) e a dos escuros (homens, panejamento púrpura com que um dos raptores sustém uma das mulheres, cavalo preto). A das mulheres e a dos homens. Ambas são interrompidas, ao serem vistas no plano. A das mulheres é ascensional e conduz para fora do quadro - a dos homens regressa (pela cabeça do cavalo para a cabeça do homem que o monta e pelo seu olhar) ao interior da cena: à mulher raptada. As mulheres buscam uma ajuda que nada lhes oferece: ao contrário da perversa protagonista de Blackmail (Alfred Hitchcock, 1929) ou de Psycho (Alfred Hitchcock, 1960) a mão não se ergue, horizontalmente, para o espectador, mas ascensionalmente para Deus - e as espirais de Hitchcock são as da ausência. A espiral das raptadas e a dos raptores, a da fuga e da esperança (no auxílio divino) e a do desejo).


P. P. Rubens, "Pequeno Julgamento Final", c. 1617-1620, óleo sobre madeira, 183,3 x 119 cm, Alte Pinakothek, Munich

A espiral é ascenção e queda. Movimento - facilmente em vertigem. Rubens ou Bernini não pedem que lhes analisemos os argumentos em primeiro lugar. Entusiasmam-nos, seduzem-nos, sugam-nos numa vertigem física e emocional. Os argumentos vêm depois. Imagens nascidas em combate. Propaganda.


Leonardo da Vinci, "Virgem dos Rochedos", 1483-86, óleo sobre madeira (depois transposto para tela), 199 x 122 cm, Musée du Louvre, Paris

O triângulo ainda se impõe sobre o serpentear da linha que pulsa já (dos pés da criança que abençoa, à direita, pelo rabo vermelho do anjo, para o seu dedo que aponta, para as mãos postas da criança à esquerda, para a mão que o abraça, pelas vestes para a cabeça inclinada para a esquerda...). O triângulo (sobretudo quando equilátero) é imóvel e fechado. A espiral é dinâmica e infinita: é sempre espiral, tenha uma ou mil torções - ou um milhão, ou...

Constantin Brancusi, Coluna Infinita, 1937-38, Târgu-Jiu, Roménia. ©Kael Alford/WMF2001 (fotografia)


Piero della Francesca, "Baptismo de Cristo", 1448-50, têmpera sobre madeira, 167 x 116 cm, National Gallery, London

Os argumentos precisam de tranquilidade: de tempo e de imobilidade. O observador fica no seu lugar. A imagem é potencilamente habitável por ele - mas não o convida a entrar (se bem que... aquele espaço vazio entre nós e o Cristo...). A perspectiva linear do Renascimento fora sempre potencialmente infinita: não delimitando o espaço, não tornando visível o seu fim, fazendo-o continuar, logicamente e à semelhança do que habitamos no quotidiano, para lá das montanhas, das arquitecturas, das neblinas. Mas as imagens propriamente "renascentistas" resumem tudo: o mundo todo. Incluem tudo o que vemos e tudo o que precisamos de ver: nenhuma parte é invisível (sim... talvez uma pequeníssima parcela das asas de um anjo, menos ainda do que parece nesta reprodução - mas, nada é, nunca, totalmente verdadeiro: nem as palavras, nem as imagens, nem as coisas), tudo se vira para o centro, o exterior não impõe a sua presença. O infinito é esquecido. Para lá das montanhas o mundo continua, mas, aqui, o círculo do Céu de Deus encontra a Terra dos Homens - no ponto exacto onde paira o Espírito Santo. E o corpo de Cristo é tão cilíndrico como o tronco da árvore que o ladeia.

Seguir-se-à bibliografia para ligar o Barroco, como alegoria e fragmento, ao presente da fotografia, do cinema, do hipertexto e da assemblage: Walter Benjamin, Gilles Delleuze, Benjamin Buchloh, Craig Owens, Omar Calabrese, Christine Buci-Glucksmann. Um programa iconográfico da azulejaria portuguesa. Textos "on-line". Recursos sobre o Barroco como cultura. Num próximo momento.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

O Arquivo Secreto do Vaticano

Contrato de 6 Novembro de 1551, assinado por Jacopo Robusti ("Tintoretto"), ASV, Fondo Veneto I, 1807 A

"Contract stipulated between the Venetian Monastery of the Madonna dell'Orto and Jacopo Robusti, also known as «Tintoretto» with whom they agreed on the figures to be painted on the little doors of an organ (portelle), the «Presentazione», the painter’s fee and the time limit within which the works had to be done. Original handwriting by D. Daniele, the legal representative of the monastery, with the autograph signatures by Tintoretto next to the amounts of the partial payments he received, until the settlement on 14th May 1556".

(Contrato entre um mosteiro veneziano e o pintor dessa cidade conhecido por Tintoretto (1518-1594): texto de apresentação do documento, na versão inglesa do "Arquivo Secreto")

Acaba de ser disponibilizado através da "internet" o famoso "Arquivo Secreto" do Vaticano (em inglês e italiano). Para além de documentos envolvendo artistas (as cartas entre o Papa e Miguel Ângelo, por exemplo), é possível passear pelos frescos do arquivo. Vale a pena explorar outros recursos oferecidos "online" pelo Vaticano: um "link" foi-lhes dedicado em "Recursos".

No "link" "Mundo Moderno" (em "Recursos"), poderão ser explorados os recursos relativos à "Reforma" ("protestantismos") e "Contra-Reforma" ("catolicismo"), para uma melhor compreensão da conjuntura em que o "Renascimento" se torna "Maneirista".

Novos links continuam a ser acrescentados: "Triplov" (um portal de cultura portuguesa), "Guardian" (o suplemento dedicado às artes do jornal britânico) e "Tate etc." (o magazine "online" da Tate), em "Imprensa"; em "Arte Portuguesa", a "Matriznet" (o motor de busca que permite aceder às coleccções de todos os museus do Instituto Português de Museus) - que já voltou a funcionar.

Dois novos "posts": "Elementos de Arquitectura 'Antiga' e 'Medieval'" e "Perspectiva 'natural' e 'artificial'", ambos com a data fictícia de 30 de Novembro de 2005.

"Clicar" nas imagens permite visualizá-las num tamanho maior.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

A pedra e o intelecto, a Antiguidade e o Génio

MICHELANGELO Buonarroti (1475 - 1564), S. Mateus, 1503, mármore, 271 cm (alt.), Galleria dell'Accademia, Florença

Non ha l'ottimo artista alcun concetto
ch'un marmo solo in sé non circonscriva
col suo soperchio, e solo a quello arriva
la mano che ubbidisce all'intelleto

(Not even the best of artist has any conception
that a single marble block does not contain
within its excess, and that is only attained
by hand that obeys the intellect

Não tem o óptimo artista algum conceito
que no bloco de mármore não esteja já
de mistura com o excesso que de lá
só retira a mão que obedece ao intelecto)

Miguel Ângelo, excerto do "Soneto151".
A tradução inglesa é de James M. Saslow, The Poetry of Michelangelo: An Annotated Translation, New Haven, Yale University Press, 1991, citada na nota 45 de Fredrika Jacobs, "Assembling: Marsyas, Michelangelo, and the Accademia del Disegno", Art Bulletin, September, 2002.

terça-feira, janeiro 03, 2006

No centro do vórtice

Robert Gober, Drain, 1989

"Todos os começos se erguem do olho de um vórtice. Este ponto zero é quase imóvel. 'Quase' é o que o torna uma excepção entre todos os pontos zero. O centro silencioso de um vórtice é um intermediário dinâmico, um intervalo de incerteza, um limiar: é um acontecimento. A exclusividade do seu silêncio alberga a liberdade absoluta. Sem espaço, constitui um exílio; sem tempo, é composto por múltiplos presentes, por uma série de começos. Este ponto zero tem uma única qualidade: é um hiato. Porém, o silêncio do vórtice nutre o impulso para uma mudança de direcção e uma mudança no pensamento.
O ponto de partida do meu livro é este instante de absoluto silêncio. Porque a quase intangível experiência do encontro, frente-a-frente, com a obra de arte parece-me definível apenas como o momento de choque induzido por tal hiato do ponto zero".
Doris von Drahten, Vortex of Silence, Milano, Edizioni Charta, 2004, pág. 6.

Alfred Hitchcock/Saul Bass, genérico inicial de Vertigo (fotograma), 1958

"Mas talvez seja tempo de nomear essa imagem que aparece no fundo do espelho [das "Meninas", de Velázquez] e que o pintor vê em frente do quadro. Talvez seja melhor determinar, de uma vez para sempre, a identidade das personagens presentes ou indicadas (…). Estes nomes próprios seriam referências úteis, evitariam designações ambíguas; dir-nos-iam, em todo caso, o que o pintor vê e o que contemplam quase todas as personagens do quadro. Mas a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita, nem que, em face do visível, ela acuse um deficit que se esforçaria em vão por superar. Trata-se de duas coisas irredutíveis uma à outra: por mais que se tente dizer o que se vê, o que se vê jamais reside no que se diz; por mais que se tente fazer ver por imagens, por metáforas, comparações, o que se diz, o lugar em que estas resplandecem não é aquele que os olhos projectam, mas sim aquele que as sequências sintácticas definem. (…) Se quisermos manter aberta a relação da linguagem e do visível, se quisermos falar não contra mas a partir de tal incompatibilidade, de tal modo que fiquemos o mais perto possível de uma e do outro, então é necessário pôr de parte os nomes próprios e permanecer no infinito da tarefa".
Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, Lisboa, Edições 70, s.d., pp. 64-65

Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960