Jacques-Louis David (1748-1825), Marat Assassiné, 1793, óleo sobre tela, 165cm x 128cm, Musées Royaux des Beaux-Arts, BruxelasO realismo: já não é exibição milagrosa, maravilhosa ilusão, como no obviamente citado Caravaggio - é facto. David não põe na imagem o que aparece, mas o que desaparece: o que vai ser tragado pela sombra. Apresenta a imagem não como explicação, mas como se ela não constituisse nenhum comentário. Apresenta um facto: a morte de um político. Um tema do presente - e não da religião, da mitologia, ou do passado.
Propaganda: mas esse "facto", explica-nos coisas. A imagem diz que este homem poderoso e temido não usou o poder em seu proveito: lençol remendado (no extremo inferior esquerdo do quadro), caixote lascado a servir de secretária. Austeridade e pobreza que contrastam com o
testamento político deixado pela assassina: tudo o que, aqui, nos é dado a ver exclui Marat do grupo de "
tout ceux qui seraient tentés d'établir leur fortune sur les ruine des peuples abusés". Não há aqui "
monstros", apenas a fragilidade do humano. David apresenta a imagem como um facto, quase como uma prova forense - ao contrário, a assassina ("Marie anne
Charlotte Corday"), na
petição que o assassinado exibe na sua mão esquerda, mentiu ("
il suffit que je sois bien malheureuse pour avoir Droit a votre bienveillance"), mentiu para aceder à privacidade da sua vítima: a verdade desta imagem, contra a mentira daquelas palavras (palavras mentirosas apenas enquanto falso pretetxo, porque verdadeiras em si mesmas, insinua David: bastaria ser infeliz, para, efectivamente, se poder contar com a benevolência de Marat). A verdade de Marat, contra a mentira de Charlotte - diz a imagem, como se nada dissesse, fazendo nascer em nós a ideia da perfídia deste assassínio. A faca assassina, contra a pena benevolente - não a que é acusada de mandar os inocentes para a guilhotina, mas a que
pela última vez se ergeu em ajuda de orfãos e viúvas. A inflamada
retórica de Charlotte, contra a secura factual de David. De Charlotte, David só deixou a mentira, obliterando-lhe a presença e as razões.
Religião: é religioso o modelo desta propaganda. Não é só a "
Deposição no Túmulo" (1602-03) de Caravaggio que pulsa sob(re) a obra, é toda uma
tradição iconográfica a dizer-nos que este homem é, não um santo, mas um mártir da República. O século XVIII iluminista e revolucionário investiu na política as estratégias da propaganda religiosa, sobretudo católica.
Vazio: enorme, informe, paira o vazio sobre o morto. Não lhe promete eternidade, não lhe promete redenção. Esmaga, sufoca, inquieta.
E, no primeiro plano, a desarmante nota pessoal: "
À Marat, David" - para o meu amigo Marat, do David. Sensibilidade (o amigo de David) ou bom-senso, leia-se racionalidade política ("
O Amigo do Povo")?
O "testamento político" de Marie-Anne-Charlotte de Corday d’Armont (1768-1793), Adresse aux Français Amis des Lois et de la Paix, no qual apresenta as razões para o assassínio de Jean-Paul Marat (1743-1793), encontra-se transcrito no artigo francês da Wikipedia dedicado a esta personagem (de lá retirámos o excerto que se apresenta em imagem). As palavras que se encontram no papel sobre o caixote, em primeiro plano, exigindo, na sua saliência, que o leiamos, foram retiradas de Pierre-Alexandre Coupin, Essai sur J. L. David Peintre d'Histoire, Ancien Membre de l'Institut, Officier de la Légion-d'Honneur, Paris, Chez Jules Renouard, 1827 (e apresentam-se, também, em imagem).